quarta-feira, 30 de julho de 2014

27 de agosto de 2006 (O regresso a Portugal)

27 de agosto de 2006
De regresso à minha terra, com o cheiro ta terra nas narinas e as lágrimas nos olhos...


Depois de dois dias em Maputo, passados a fazer balanços da nossa atividade, estávamos de novo juntas, as três voluntárias, dentro do grande pássaro de lata que nos traria de volta a Portugal. Mais uma vez, o silêncio apoderou-se de nós. Não falamos antes de o avião levantar, nem depois de este já voar. Cada uma para seu lado ia tentando digerir o que acabara de viver. Quando olhava para uma delas via uma lágrima a correr-lhe na face. Sabia que das três, a Iva era a mais maternal e a mais emotiva, pela forma como se agarrava à capulana que nos haviam oferecido e que quase sempre a acompanhava no saco de mão.

Saímos a horas, pelas 23h 50 e, embora nem todo tenha sido fácil ao nível das emoções, o que tornou o voo noturno em sofrimento, num inexplicável mal-estar, fazendo com que a tripulação tivesse alguma atenção para comigo. Assombrosa sensação a que sentia por estar estranhamente mal disposta. Levaram-me para um local mais tranquilo, longe dos olhares dos outros passageiros. Passou-me tudo pela cabeça. Desde uma simples constipação, a uma indisposição por ter comido mal (ao longo dos últimos dias e no dia da partida), à possibilidade de ter malária! 
Perguntaram se havia um médico a bordo. Apareceram três. Um comprimido, umas palavras de ânimo, acho que um deles, depois de ter falado um pouco comigo, percebeu as razões da minha indisposição, pois referiu que era normal aquele tipo de reação quando se viviam as situações de forma muito intensa como aquela que acabara de lhe relatar. Um mês numa região, outro mês noutra região. Um trabalho muito próximo com as pessoas, uma vida diferente do meu quotidiano na Europa. E tinha razão o médico! Passado um tempo e porque o comprimido fazia efeito e o cansaço se apoderava de mim lá adormeci até me acordarem, pelas 4 da manhã, para tomar o pequeno-almoço. Disse-nos o comandante que aterraríamos em Lisboa uma hora antes do previsto porque a viagem tinha corrido muito bem.
Juntei-me às minhas colegas que tinham sido informadas de que me encontrava a descansar mas que estava bem. No entanto, e por precaução, o médico aconselhara-me a procurar o hospital com a especialidade de doenças tropicais para verificar se tinha ou não malária.
Quando aterrámos e informei a família de que estava em Portugal, a sensação de alívio soou do outro lado do telefone, como se a minha mãe previsse que não estava bem. A receção foi tão calorosa que me esqueci que andava indisposta e que persistia um incómodo, dores de cabeça e no corpo, que na realidade não estava bem fisicamente. Sem nada dizer, aproveitei que já estava ao serviço da escola e dirigi-me ao hospital para fazer o teste da malária. Não é que estivesse totalmente posto de parte, mas acreditava mais que era um acumular de emoções, juntamente com uma certa fraqueza por ter passado algumas carências na alimentação. Claro que na minha região os hospitais não têm a especialidade das doenças tropicais (como em qualquer centro de saúde em Moçambique), pelo que tive que me dirigir a um Hospital Central. Na verdade, o teste comprovou a não existência de malária e as análises feitas revelaram um pequeno distúrbio no fígado, causado pela medicação da profilaxia da malária, bem como cansaço físico. Ao nível das emoções também estava um pouco diferente. Tinham sido dois meses muito intensos!
Depois de passada esta fase menos positiva e de retomado o ritmo normal da vida aqui em Portugal, no coração abria-se a uma nova perspetiva, contavam-se os dias para o regresso. A minha vida é cá. Mas sei que também passa por lá. Sinto o chamamento, a voz de uma terra quente, do seu cheiro indescritível, do seu povo, mas também do meu coração que não consegue desprender-se desta forma de estar na vida.
As minhas férias escolares já não fazem sentido se não voltar, nem que seja apenas por cinco semanas… Por isso, estou determinada a regressar e, se possível a Tete, uma província que me marcou tremendamente. Será pela sua aridez? Será pelo calor da terra e das gentes? Será por ter sentido dificuldades e ter conseguido superá-las? Não sei se sei responder. Apenas sei que quero voltar. E hei de voltar sempre que me chamarem e enquanto tiver força para aguentar um ano letivo e um período de quase dois meses de trabalho intenso e emoções fortes.

Enfim, reflexões feitas, não nego que foram precisos alguns meses para digerir determinados momentos que não me saíam do pensamento. Sem dúvida que quem vai a África e traz um pedacinho deste continente no coração não consegue esquecer facilmente o que lá ficou e o que lá viveu. O desejo de voltar transforma-se numa quase obstinação que não nos larga por tempos… Com a certeza de que ia regressar pela terceira vez, o ânimo foi retomado. As forças concentraram-se novamente num projeto, que pode ser uma pequena gota de água que cai num imenso deserto, mas que juntamente com outras gotas pode ir molhando a terra árida, fazendo com que esta se transforme em terra arável e fértil que vai dar fruto.


Iva, Maria e Sandra (a minha capulana estava guardada)

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