1 de agosto de 2006
Pelas sete horas estava a caminho do aeroporto para
apanhar um avião para Tete. Mais uma vez, a viagem entre a casa principal e o
aeroporto faz-se por uma parte da cidade que, apesar de se ter expandido
recentemente, é bastante pobre. O movimento é imenso, com “chapas” a passar a
toda a velocidade, mal respeitando outros veículos ou peões (É muito frequente
haver acidentes mortais, com estes meios de transporte). Há gente que caminha
pela berma da estrada, apressada, para os seus trabalhos, para a escola.
O avião sai em direcção a Tete, uma província do
interior centro, que faz fronteira com o Malawi e a Zâmbia, situada a cerca de
1 600 Km da capital. O voo é directo e dura cerca de 1 h e 45 minutos, num
“boing”, pois se for no pequeno de hélices demora 2h e 45 minutos.
Vou apreciando a paisagem. Apercebo-me das constantes
mudanças de cor, entre o verde das plantações de cana-de-açúcar do vale do rio
Limpopo, das montanhas de Chimoio e, depois, a aridez do planalto onde se situa
a cidade de Tete, por onde serpenteia o Zambeze, o grande rio moçambicano,
tantas vezes amado e outras tantas odiado. Com a aproximação do avião à região,
começamos a aperceber-nos da enorme quantidade de árvores gigantescas que abrem
seus ramos para o alto como se estivessem constantemente a espreguiçar-se. São
os embondeiros que proliferam nesta região e que tenho a oportunidade de ver
pela primeira vez, depois de tantos anos de curiosidade sobre estas árvores,
cuja referência me tinha ficado da leitura de Le Petit Prince, de Saint-Exupéry. Pela ilustração do livro e pelo
nome – “baobab”, pressupunha que se tratava de uma árvore gigantesca, mas ver
tantas de uma só vez foi mais gigantesco ainda.
Estava satisfeita a minha curiosidade de adolescente,
de um dia poder ver de perto e de tocar numa destas árvores. Quando cheguei à
escola Dom Bosco do Matundo, que seria a minha segunda casa nesse verão, fui a
correr para junto de um dos embondeiros, deixando um pouco espantados os meus
cicerones. Apesar de se encontrarem quase todos despidos de folhagem, porque em
agosto para eles é época fria, só um dos embondeiros da nossa escola mantém as
folhas verdes, por se encontrar num local onde há água. Estas árvores centenárias
ou mesmo milenares são completamente ocas no seu interior[1]. Tive
a oportunidade de ver algumas carcaças tombadas. Depois de mortas não servem
para nada. E ainda bem. Caso contrário já tinham desaparecido, como acontece
com as árvores de onde se extrai o pau-preto. Fiz uma experiência para testar a
espessura de um dos embondeiros. Coloquei dez jovens de mãos dadas a cercar uma
dessas árvores. Riram desta minha atitude, mas que podia fazer? A presença
destes gigantes da natureza inebriou-me.
Logo à chegada, e para além desta experiência com os
embondeiros, houve outro facto marcante. A temperatura em Tete passava dos 30º
C. Ao sair do avião, senti uma aragem quente e seca que bailava pelo meu corpo,
parecendo querer entrar e fazer parte da minha existência. Não imaginava a
temperatura que os termómetros registavam. Por volta das 13/14 horas estava
ainda mais calor. Sentia o corpo pesado e a cabeça a latejar. Abeirou-se de mim
um receio tal de não aguentar aquelas temperaturas que resolvi descansar um
pouco. Mais tarde, disseram-me que não me preocupasse, que aquelas temperaturas
eram normais, embora ainda estivéssemos na época do tempo mais fresco, pois em
dezembro/janeiro passava-se e bastante do 40º, mas que, na verdade a
temperatura tinha subido nos últimos dias.
Passei alguns dias a habituar-me àquele clima, à nova
casa, à nova realidade. Depressa me apercebi que as imagens iniciais, que
deliciaram os meus olhos ao chegar a Tete, começavam a tornar-se difíceis de
encarar. Sentia-me só, apesar de existir um outro voluntário e de na comunidade
me terem acolhido muito bem. A companhia das minhas duas colegas da Moamba
fazia-me falta e, já estava habituada a trabalhar sozinha, desde o ano anterior,
todavia ali era mais difícil.
Valeu-me o trabalho que me estava destinado e as
pessoas maravilhosas que descobri no voluntário espanhol, o Pablo, que ali
estava há já um mês e que também se sentia só; do director da casa, homem de
poucas mas acertadíssimas palavras, muito pragmático; dos professores com quem
trabalhei e dos alunos, seres maravilhosos, ávidos por aprender e muito
divertidos. Todos me receberam de braços abertos, inserindo-me naquele meio,
naquele imenso espaço que é a Escola Profissional Dom Bosco do Matundo.
As aulas decorriam da parte da manhã, assim como o
acompanhamento aos professores, através da assistência às suas aulas, às
reflexões e discussões sobre novas práticas pedagógicas. O contacto com os
alunos permitiu-me uma nova visão das coisas, nomeadamente do voluntariado, o
que já havia acontecido na Moamba, pois no ano anterior não tinha tido essa
percepção, em virtude do trabalho que me fora destinado. De tarde, estive a
concluir os Manuais de Apoio aos livros de Português, para alunos e
professores, bem como uma compilação de Fichas de Trabalho para auxiliar no
estudo enquanto, noutro local, a minha colega preparava o manual
Pedagógico-Didáctico.
Sala de aula
Oficinas
Numa das aulas, em que introduzia a temática da
Literatura Oral – o Conto – decidi contar aos alunos do 3º Ano, uma história
que escutara na Moamba e que se relacionava bastante com a temática a
introduzir, mas também com a realidade destes alunos. Contava-lhes então que:
“Certo dia, um velho pai de numerosa
família, prevendo aproximar-se a hora da sua morte e sabendo que os seus
filhos, bastante preguiçosos, não iriam sobreviver durante muito tempo, pediu
auxílio a um vizinho e amigo para que tomasse conta de seus filhos.
De facto, o velho homem acabou por
morrer e o seu vizinho, cumprindo a promessa feita, chamou os filhos
preguiçosos do seu amigo e falou-lhes desta forma:
- Caros amigos. O vosso pai partiu.
Agora já não têm quem trabalhe para vos sustentar. Tenho ali uma machamba
enorme onde se esconde um tesouro. Contudo, não sei onde está. Por isso, vamos
começar a cavar a terra deste lado e vamos procurar o tesouro.
Os filhos do velho não ficaram lá
muito satisfeitos mas, na esperança de encontrar o tesouro que os deixasse bem
servidos para o resto da vida, puseram pés ao caminho e mãos à enxada e lá
foram cavando todos os dias um pedaço de terra. Quando já tinham metade da
terra cavada, o vizinho sugeriu que começassem a semeá-la para que pudesse dar
frutos e assim teriam alimentos para consumir e até vender, já que tinham a
terra em condições. Os outros aceitaram e continuaram a cavar a metade que
restava.
As sementes foram germinando e
começaram a dar frutos, quando a outra metade da terra já estava também cavada (embora
do tesouro não se visse nem fumo!) colheram os frutos da primeira metade,
plantaram a segunda e assim começaram a ter comida e dinheiro.
Então, o vizinho disse-lhes: Não
encontrámos um tesouro! Conseguimos muito mais do que isso. Criámos o nosso
próprio tesouro! É assim que tem de ser: “Va ta sulo va o lolo”- disse-lhes o
velho, que quer dizer, “Hão de deixar de ser preguiçosos”!
Mal sabia que os alunos iriam falar desta história aos
seus professores, aos seus colegas e ao seu diretor e que esta desse tantos
motivos para conversas.
É que os alunos das diferentes turmas tinham uma missão
importante a cumprir. Entre eles, deveriam abrir as “covas” para colocar as
tabelas de basquetebol do pavilhão gimnodesportivo, entretanto feitas pelos
alunos de Serralharia. Ao cavarem a sua parte, os alunos do 3º Ano comentavam
entre si: “Os rapazes da história da professora Maria cavavam a terra para
encontrar um tesouro. Nós cavamos a terra para enterrar o nosso tesouro!”. “Mas
que história é essa?”, perguntava o Diretor. E eles lá contavam a peripécia dos
rapazes preguiçosos.
Assimilar a adaptação dos alunos à situação que estavam
a viver levou-me um certo tempo, pois estes haviam entendido perfeitamente a
mensagem e tinham feito dela um lema, que até serviu de incentivo aos restantes
colegas. É que em certos momentos do dia, com o calor que se faz sentir, não é
fácil, cavar e partir pedra dura!
Mais uma lição que acabei por aprender com aqueles
jovens. E tantas outras se foram desenrolando entretanto. Cada dia, cada aula
eram caixinhas de surpresas que os alunos me apresentavam como se de um tesouro
se tratasse.
Aos sábados e aos domingos, a presença de imensas
crianças no Oratório trazia colorido e uma alegria imensos àquele espaço árido
da escola! Desde bem cedo, começavam a chegar, alguns vinham de bem longe! Para
ver um filme, ao sábado, ou participar nas diversas actividades, promovidas
pelos alunos da escola e animadores do Oratório – jogos, danças, teatro,
costura e as histórias, que entretanto lhes comecei a ler ou a contar. No
final, reuníamos todos para cantar e dançar. Claro que fui para o meio da roda
vezes sem conta e que riam da minha triste figura, pois estou muito longe de
dançar como eles!
As crianças nas brincadeiras e a ver um filme
O campo de futebol da escola do Matundo
E com este cenário, fui esquecendo o imenso calor que
entretanto grassava por aquelas paragens, o cansaço que provocava no meu corpo,
as saudades das minhas colegas de missão e até do meu país.
Um dos momentos que jamais se apagará da minha memória
é o pôr-do-sol por entre os embondeiros. Sem dúvida abismal!
Parece que um imenso mar de fogo inunda o céu e, em
pouco mais de cinco minutos, este cenário transforma-se em escuridão. As três
cores dominantes são uma bola branca, uma espécie de auréola amarela e o resto
tudo laranja. Os embondeiros parecem abrir os ramos nus para abraçar este
cenário magnânime, como se esperassem receber o tempo como recompensa. Foram
muitos os pores de sol que presenciei e, se dizem que em África este é um dos
mais bonitos cenários, é uma verdade incontornável!
As três fases do pôr do sol
Outra das características desta árida região de
Moçambique é a presença dos cabritos. Dizem que nesta região “há mais cabritos que homens”. Pareceu-me
exagerado, mas o que é um facto é que estes animais andam por todo o lado,
sozinhos ou em grandes rebanhos, guardados por crianças e jovens.
Ver os miúdos chegar do mato
montados nos cabritos, depois de um dia sob o calor tórrido, muitas vezes sem
terem sequer comido uma única refeição, e parar a conversar com eles é mais uma
lição de vida para nós que não temos que nos preocupar com estas coisas.
aldeia típica
Mulheres carregando lenha
Mas nem tudo são maravilhas neste
local. Por ali existem muitas osgas que passeiam, distraída e confortavelmente,
pelas paredes e teto do meu quarto. Mas onde elas gostam mesmo de estar é na
casa de banho. Deve ser por estar mais fresco. Mas destes bichinhos de cor
salmão e meios transparentes não tenho já receios porque se tornaram meus
companheiros ao longo do primeiro ano e, como me informaram que eram amigos
pois comiam os mosquitos, nunca me atrevi a matar nenhum, apesar do seu aspecto
bizarro e de serem um tanto pegajosos. Já as cobras, bichos com quem não
gostaria de me ter cruzado, de vez em quando faziam-nos uma visita, bem perto
dos nossos quartos. Foram vários os sustos que me pregaram estes seres
rastejantes! No entanto, os alunos e os restantes membros da casa pareciam
muito familiarizados com elas. Diziam que quando chegava o calor elas
costumavam sair das tocas e passear-se pelos terrenos em redor da escola.
Então, os jovens agarravam-nas e passeavam-se com elas, penduradas num ramo de
árvore, como se transportassem um troféu. Sem dúvida uma forma interessante de
lidar com estes bichos, alguns muito venenosos, mas que parecem partilhar o dia-a-dia
com estas pessoas sem receios de parte a parte. Quanto a mim, quero muita
distância delas, sobretudo que não entrem no meu quarto, onde até cheguei a colocar
uma ripa de madeira na porta. Quando saía, ela ficava do lado de fora, quando
entrava ela ia para o lado de dentro. "Que patetice!" poder-se-á
pensar, mas na verdade não gosto destes bichos. Curiosamente nunca usei rede
mosquiteira, embora nos dias de mais calor colocasse repelente e spray no
quarto. E nunca tive problemas. Também nunca dei muita importância a alguns
alertas que me tinham feito na consulta do viajante. Claro que tomei as
precauções quanto a vacinas. Porém não conseguia tomar os comprimidos da
prevenção da malária, porque me sentia mal com eles. Nem sempre é fácil
mudar-se de hábitos, sobretudo porque quase dois meses, em locais muito
diferentes em todos os aspetos, até nos gastronómicos, depois de um ano de
trabalho intelectual e stressante, podem levar-nos a enfraquecer. E como o
nosso dia é um pouquinho mais longo pois queremos rentabilizar o pouco tempo
que temos para muitas tarefas. Portanto, devemos alimentar-nos mais ou menos
bem.
Em Tete, nem sempre foi possível.
Por vezes, o almoço era um pão com uma banana. Até ao momento em que pedi para
ir à cidade e, com alguma facilidade conseguia fruta para as saladas e legumes
para fazer sopa. Aqui, senti as dificuldades de todos e, ao mesmo tempo, a
solidariedade. Na escola e com um cacho de bananas na mão, no meio de uma roda
feita pelos meninos, via-os aproximarem-se um a um, tirar uma banana e dividir
com um colega. Faria assim uma criança do nosso meio? Os nossos alunos comiam
um pão e bebiam um chá a meio da manhã, o mata-bicho e só quando chegassem a
casa, depois das 15h é que fariam uma refeição, se a tivessem. Vi muitos
desmaiarem nas aulas, com fome, obviamente, mas também com malária e outros
problemas. Nem sempre é fácil contabilizar as presenças às aulas. Na escola os
alunos são constantemente responsabilizados para a necessidade de virem às
aulas. Contudo, muitos vêm de longe, a pé, de camião, de bicicleta, de chapa.
Muitos estão deslocados das suas regiões pois esta é uma das poucas escolas
profissionais no centro de Moçambique e outros ainda são os responsáveis pela
numerosa família tendo que resolver todos os assuntos e ainda trabalhar para
ajudar.
Recordando as bicicletas todas em
filinha na escola, este é um aspeto interessante neste planalto, atravessado
pelo Zambeze. Este meio de transporte é multifuncional. Leva pessoas, carrega
com molhos de lenha e, vezes sem conta, são imensas as coisas que vemos serem
transportadas numa bicicleta, incluindo animais às costas do próprio ciclista!
Há coisas que realmente não são comparáveis e o que para muitos é "uma
estranha forma de vida" para mim é uma forma de sobrevivência.
Aproxima-se o dia de deixar Tete,
rumo a Maputo, dois dias antes da partida para Portugal. Uma questão de timing para que não existam problemas no
regresso. Estamos quase em setembro e, dia um regressamos à escola. E
retomaremos a nossa vida rotineira!
A viagem é novamente de avião.
Poupam-me aos longos dois dias de autocarro (machibombo) com uma paragem
noturna para descansar! Fazemos escala na cidade da Beira. Ao aproximar-nos da
pista, vemos uma cidade aparentemente bonita, com palmeiras, praia… Mas, ao que
parece, ainda há muitos edifícios por reconstruir, um hotel ocupado por
centenas de famílias (contaram-me depois) e alguma desorganização. Não me
apercebo, pois apenas saímos do avião por 25 minutos. O aeroporto é
relativamente moderno e bem organizado. Voltamos a entrar no avião, rumo à
capital, onde está mais fresco do que em Tete.
[1] O embondeiro é uma árvore estranha que pode atingir a
altura de 20 a 30 metros e medir 10 de diâmetro e quando velha tem um aspeto
fossilizado, apesar de continuar viva. Existe em África, na América do Sul e na
Austrália. Diz-se que chega a viver milhares de anos, mas isso não pode ser
provado, porque não produz anéis de crescimento.
Nos meses de chuva, as
árvores armazenam água, no seu grosso tronco de cortiça, resistente ao fogo,
para a época seca posterior. As árvores podem armazenar centenas de litros de
água que por vezes são aproveitados pelos humanos sedentos.
As
fendas abertas naturalmente nos troncos são tão grandes que permitem que caibam
lá dentro várias pessoas adultas e como os troncos são ocos podem servir de
cisternas colectivas em tempo de seca, de celeiros - e também de prisões e de
sepulturas.
O
embondeiro faz parte do imaginário colectivo dos africanos e em algumas regiões
é considerado um intermediário entre Deus e os homens e venerado como
representação de entidade sobrenaturais, sendo amarradas aos seus ramos fitas,
adereços e ex-votos.
Uma
das lendas africanas conta que o embondeiro, por ter inveja das outras árvores,
foi castigado pelos deuses, e posto de cabeça para baixo: a copa foi enterrada
e as raízes ficaram para cima. Quando se vê um embondeiro fossilizado,
compreendemos com facilidade a origem da lenda... (retirado de um sítio na Internet)
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