sexta-feira, 25 de julho de 2014

Ano de 2006 (2ª parte - Matundo - província de Tete)

1 de agosto de 2006



Pelas sete horas estava a caminho do aeroporto para apanhar um avião para Tete. Mais uma vez, a viagem entre a casa principal e o aeroporto faz-se por uma parte da cidade que, apesar de se ter expandido recentemente, é bastante pobre. O movimento é imenso, com “chapas” a passar a toda a velocidade, mal respeitando outros veículos ou peões (É muito frequente haver acidentes mortais, com estes meios de transporte). Há gente que caminha pela berma da estrada, apressada, para os seus trabalhos, para a escola.
O avião sai em direcção a Tete, uma província do interior centro, que faz fronteira com o Malawi e a Zâmbia, situada a cerca de 1 600 Km da capital. O voo é directo e dura cerca de 1 h e 45 minutos, num “boing”, pois se for no pequeno de hélices demora 2h e 45 minutos.
Vou apreciando a paisagem. Apercebo-me das constantes mudanças de cor, entre o verde das plantações de cana-de-açúcar do vale do rio Limpopo, das montanhas de Chimoio e, depois, a aridez do planalto onde se situa a cidade de Tete, por onde serpenteia o Zambeze, o grande rio moçambicano, tantas vezes amado e outras tantas odiado. Com a aproximação do avião à região, começamos a aperceber-nos da enorme quantidade de árvores gigantescas que abrem seus ramos para o alto como se estivessem constantemente a espreguiçar-se. São os embondeiros que proliferam nesta região e que tenho a oportunidade de ver pela primeira vez, depois de tantos anos de curiosidade sobre estas árvores, cuja referência me tinha ficado da leitura de Le Petit Prince, de Saint-Exupéry. Pela ilustração do livro e pelo nome – “baobab”, pressupunha que se tratava de uma árvore gigantesca, mas ver tantas de uma só vez foi mais gigantesco ainda.
 


Estava satisfeita a minha curiosidade de adolescente, de um dia poder ver de perto e de tocar numa destas árvores. Quando cheguei à escola Dom Bosco do Matundo, que seria a minha segunda casa nesse verão, fui a correr para junto de um dos embondeiros, deixando um pouco espantados os meus cicerones. Apesar de se encontrarem quase todos despidos de folhagem, porque em agosto para eles é época fria, só um dos embondeiros da nossa escola mantém as folhas verdes, por se encontrar num local onde há água. Estas árvores centenárias ou mesmo milenares são completamente ocas no seu interior[1]. Tive a oportunidade de ver algumas carcaças tombadas. Depois de mortas não servem para nada. E ainda bem. Caso contrário já tinham desaparecido, como acontece com as árvores de onde se extrai o pau-preto. Fiz uma experiência para testar a espessura de um dos embondeiros. Coloquei dez jovens de mãos dadas a cercar uma dessas árvores. Riram desta minha atitude, mas que podia fazer? A presença destes gigantes da natureza inebriou-me.
Logo à chegada, e para além desta experiência com os embondeiros, houve outro facto marcante. A temperatura em Tete passava dos 30º C. Ao sair do avião, senti uma aragem quente e seca que bailava pelo meu corpo, parecendo querer entrar e fazer parte da minha existência. Não imaginava a temperatura que os termómetros registavam. Por volta das 13/14 horas estava ainda mais calor. Sentia o corpo pesado e a cabeça a latejar. Abeirou-se de mim um receio tal de não aguentar aquelas temperaturas que resolvi descansar um pouco. Mais tarde, disseram-me que não me preocupasse, que aquelas temperaturas eram normais, embora ainda estivéssemos na época do tempo mais fresco, pois em dezembro/janeiro passava-se e bastante do 40º, mas que, na verdade a temperatura tinha subido nos últimos dias.
Passei alguns dias a habituar-me àquele clima, à nova casa, à nova realidade. Depressa me apercebi que as imagens iniciais, que deliciaram os meus olhos ao chegar a Tete, começavam a tornar-se difíceis de encarar. Sentia-me só, apesar de existir um outro voluntário e de na comunidade me terem acolhido muito bem. A companhia das minhas duas colegas da Moamba fazia-me falta e, já estava habituada a trabalhar sozinha, desde o ano anterior, todavia ali era mais difícil.
Valeu-me o trabalho que me estava destinado e as pessoas maravilhosas que descobri no voluntário espanhol, o Pablo, que ali estava há já um mês e que também se sentia só; do director da casa, homem de poucas mas acertadíssimas palavras, muito pragmático; dos professores com quem trabalhei e dos alunos, seres maravilhosos, ávidos por aprender e muito divertidos. Todos me receberam de braços abertos, inserindo-me naquele meio, naquele imenso espaço que é a Escola Profissional Dom Bosco do Matundo.
As aulas decorriam da parte da manhã, assim como o acompanhamento aos professores, através da assistência às suas aulas, às reflexões e discussões sobre novas práticas pedagógicas. O contacto com os alunos permitiu-me uma nova visão das coisas, nomeadamente do voluntariado, o que já havia acontecido na Moamba, pois no ano anterior não tinha tido essa percepção, em virtude do trabalho que me fora destinado. De tarde, estive a concluir os Manuais de Apoio aos livros de Português, para alunos e professores, bem como uma compilação de Fichas de Trabalho para auxiliar no estudo enquanto, noutro local, a minha colega preparava o manual Pedagógico-Didáctico.


Sala de aula 



Oficinas




Numa das aulas, em que introduzia a temática da Literatura Oral – o Conto – decidi contar aos alunos do 3º Ano, uma história que escutara na Moamba e que se relacionava bastante com a temática a introduzir, mas também com a realidade destes alunos. Contava-lhes então que:
Certo dia, um velho pai de numerosa família, prevendo aproximar-se a hora da sua morte e sabendo que os seus filhos, bastante preguiçosos, não iriam sobreviver durante muito tempo, pediu auxílio a um vizinho e amigo para que tomasse conta de seus filhos.
De facto, o velho homem acabou por morrer e o seu vizinho, cumprindo a promessa feita, chamou os filhos preguiçosos do seu amigo e falou-lhes desta forma:
- Caros amigos. O vosso pai partiu. Agora já não têm quem trabalhe para vos sustentar. Tenho ali uma machamba enorme onde se esconde um tesouro. Contudo, não sei onde está. Por isso, vamos começar a cavar a terra deste lado e vamos procurar o tesouro.
Os filhos do velho não ficaram lá muito satisfeitos mas, na esperança de encontrar o tesouro que os deixasse bem servidos para o resto da vida, puseram pés ao caminho e mãos à enxada e lá foram cavando todos os dias um pedaço de terra. Quando já tinham metade da terra cavada, o vizinho sugeriu que começassem a semeá-la para que pudesse dar frutos e assim teriam alimentos para consumir e até vender, já que tinham a terra em condições. Os outros aceitaram e continuaram a cavar a metade que restava.
As sementes foram germinando e começaram a dar frutos, quando a outra metade da terra já estava também cavada (embora do tesouro não se visse nem fumo!) colheram os frutos da primeira metade, plantaram a segunda e assim começaram a ter comida e dinheiro.
Então, o vizinho disse-lhes: Não encontrámos um tesouro! Conseguimos muito mais do que isso. Criámos o nosso próprio tesouro! É assim que tem de ser: “Va ta sulo va o lolo”- disse-lhes o velho, que quer dizer, “Hão de deixar de ser preguiçosos”!

Mal sabia que os alunos iriam falar desta história aos seus professores, aos seus colegas e ao seu diretor e que esta desse tantos motivos para conversas.
É que os alunos das diferentes turmas tinham uma missão importante a cumprir. Entre eles, deveriam abrir as “covas” para colocar as tabelas de basquetebol do pavilhão gimnodesportivo, entretanto feitas pelos alunos de Serralharia. Ao cavarem a sua parte, os alunos do 3º Ano comentavam entre si: “Os rapazes da história da professora Maria cavavam a terra para encontrar um tesouro. Nós cavamos a terra para enterrar o nosso tesouro!”. “Mas que história é essa?”, perguntava o Diretor. E eles lá contavam a peripécia dos rapazes preguiçosos.
Assimilar a adaptação dos alunos à situação que estavam a viver levou-me um certo tempo, pois estes haviam entendido perfeitamente a mensagem e tinham feito dela um lema, que até serviu de incentivo aos restantes colegas. É que em certos momentos do dia, com o calor que se faz sentir, não é fácil, cavar e partir pedra dura!
Mais uma lição que acabei por aprender com aqueles jovens. E tantas outras se foram desenrolando entretanto. Cada dia, cada aula eram caixinhas de surpresas que os alunos me apresentavam como se de um tesouro se tratasse.
Aos sábados e aos domingos, a presença de imensas crianças no Oratório trazia colorido e uma alegria imensos àquele espaço árido da escola! Desde bem cedo, começavam a chegar, alguns vinham de bem longe! Para ver um filme, ao sábado, ou participar nas diversas actividades, promovidas pelos alunos da escola e animadores do Oratório – jogos, danças, teatro, costura e as histórias, que entretanto lhes comecei a ler ou a contar. No final, reuníamos todos para cantar e dançar. Claro que fui para o meio da roda vezes sem conta e que riam da minha triste figura, pois estou muito longe de dançar como eles!

As crianças nas brincadeiras e a ver um filme 



                                   O campo de futebol da escola do Matundo

E com este cenário, fui esquecendo o imenso calor que entretanto grassava por aquelas paragens, o cansaço que provocava no meu corpo, as saudades das minhas colegas de missão e até do meu país.
Um dos momentos que jamais se apagará da minha memória é o pôr-do-sol por entre os embondeiros. Sem dúvida abismal!
Parece que um imenso mar de fogo inunda o céu e, em pouco mais de cinco minutos, este cenário transforma-se em escuridão. As três cores dominantes são uma bola branca, uma espécie de auréola amarela e o resto tudo laranja. Os embondeiros parecem abrir os ramos nus para abraçar este cenário magnânime, como se esperassem receber o tempo como recompensa. Foram muitos os pores de sol que presenciei e, se dizem que em África este é um dos mais bonitos cenários, é uma verdade incontornável!


As três fases do pôr do sol



Outra das características desta árida região de Moçambique é a presença dos cabritos. Dizem que nesta região “há mais cabritos que homens”. Pareceu-me exagerado, mas o que é um facto é que estes animais andam por todo o lado, sozinhos ou em grandes rebanhos, guardados por crianças e jovens.
            Ver os miúdos chegar do mato montados nos cabritos, depois de um dia sob o calor tórrido, muitas vezes sem terem sequer comido uma única refeição, e parar a conversar com eles é mais uma lição de vida para nós que não temos que nos preocupar com estas coisas.

aldeia típica

Mulheres carregando lenha

            Mas nem tudo são maravilhas neste local. Por ali existem muitas osgas que passeiam, distraída e confortavelmente, pelas paredes e teto do meu quarto. Mas onde elas gostam mesmo de estar é na casa de banho. Deve ser por estar mais fresco. Mas destes bichinhos de cor salmão e meios transparentes não tenho já receios porque se tornaram meus companheiros ao longo do primeiro ano e, como me informaram que eram amigos pois comiam os mosquitos, nunca me atrevi a matar nenhum, apesar do seu aspecto bizarro e de serem um tanto pegajosos. Já as cobras, bichos com quem não gostaria de me ter cruzado, de vez em quando faziam-nos uma visita, bem perto dos nossos quartos. Foram vários os sustos que me pregaram estes seres rastejantes! No entanto, os alunos e os restantes membros da casa pareciam muito familiarizados com elas. Diziam que quando chegava o calor elas costumavam sair das tocas e passear-se pelos terrenos em redor da escola. Então, os jovens agarravam-nas e passeavam-se com elas, penduradas num ramo de árvore, como se transportassem um troféu. Sem dúvida uma forma interessante de lidar com estes bichos, alguns muito venenosos, mas que parecem partilhar o dia-a-dia com estas pessoas sem receios de parte a parte. Quanto a mim, quero muita distância delas, sobretudo que não entrem no meu quarto, onde até cheguei a colocar uma ripa de madeira na porta. Quando saía, ela ficava do lado de fora, quando entrava ela ia para o lado de dentro. "Que patetice!" poder-se-á pensar, mas na verdade não gosto destes bichos. Curiosamente nunca usei rede mosquiteira, embora nos dias de mais calor colocasse repelente e spray no quarto. E nunca tive problemas. Também nunca dei muita importância a alguns alertas que me tinham feito na consulta do viajante. Claro que tomei as precauções quanto a vacinas. Porém não conseguia tomar os comprimidos da prevenção da malária, porque me sentia mal com eles. Nem sempre é fácil mudar-se de hábitos, sobretudo porque quase dois meses, em locais muito diferentes em todos os aspetos, até nos gastronómicos, depois de um ano de trabalho intelectual e stressante, podem levar-nos a enfraquecer. E como o nosso dia é um pouquinho mais longo pois queremos rentabilizar o pouco tempo que temos para muitas tarefas. Portanto, devemos alimentar-nos mais ou menos bem.
            Em Tete, nem sempre foi possível. Por vezes, o almoço era um pão com uma banana. Até ao momento em que pedi para ir à cidade e, com alguma facilidade conseguia fruta para as saladas e legumes para fazer sopa. Aqui, senti as dificuldades de todos e, ao mesmo tempo, a solidariedade. Na escola e com um cacho de bananas na mão, no meio de uma roda feita pelos meninos, via-os aproximarem-se um a um, tirar uma banana e dividir com um colega. Faria assim uma criança do nosso meio? Os nossos alunos comiam um pão e bebiam um chá a meio da manhã, o mata-bicho e só quando chegassem a casa, depois das 15h é que fariam uma refeição, se a tivessem. Vi muitos desmaiarem nas aulas, com fome, obviamente, mas também com malária e outros problemas. Nem sempre é fácil contabilizar as presenças às aulas. Na escola os alunos são constantemente responsabilizados para a necessidade de virem às aulas. Contudo, muitos vêm de longe, a pé, de camião, de bicicleta, de chapa. Muitos estão deslocados das suas regiões pois esta é uma das poucas escolas profissionais no centro de Moçambique e outros ainda são os responsáveis pela numerosa família tendo que resolver todos os assuntos e ainda trabalhar para ajudar.
            Recordando as bicicletas todas em filinha na escola, este é um aspeto interessante neste planalto, atravessado pelo Zambeze. Este meio de transporte é multifuncional. Leva pessoas, carrega com molhos de lenha e, vezes sem conta, são imensas as coisas que vemos serem transportadas numa bicicleta, incluindo animais às costas do próprio ciclista! Há coisas que realmente não são comparáveis e o que para muitos é "uma estranha forma de vida" para mim é uma forma de sobrevivência.

            Aproxima-se o dia de deixar Tete, rumo a Maputo, dois dias antes da partida para Portugal. Uma questão de timing para que não existam problemas no regresso. Estamos quase em setembro e, dia um regressamos à escola. E retomaremos a nossa vida rotineira!
            A viagem é novamente de avião. Poupam-me aos longos dois dias de autocarro (machibombo) com uma paragem noturna para descansar! Fazemos escala na cidade da Beira. Ao aproximar-nos da pista, vemos uma cidade aparentemente bonita, com palmeiras, praia… Mas, ao que parece, ainda há muitos edifícios por reconstruir, um hotel ocupado por centenas de famílias (contaram-me depois) e alguma desorganização. Não me apercebo, pois apenas saímos do avião por 25 minutos. O aeroporto é relativamente moderno e bem organizado. Voltamos a entrar no avião, rumo à capital, onde está mais fresco do que em Tete.







[1] O embondeiro é uma árvore estranha que pode atingir a altura de 20 a 30 metros e medir 10 de diâmetro e quando velha tem um aspeto fossilizado, apesar de continuar viva. Existe em África, na América do Sul e na Austrália. Diz-se que chega a viver milhares de anos, mas isso não pode ser provado, porque não produz anéis de crescimento.
Nos meses de chuva, as árvores armazenam água, no seu grosso tronco de cortiça, resistente ao fogo, para a época seca posterior. As árvores podem armazenar centenas de litros de água que por vezes são aproveitados pelos humanos sedentos.
As fendas abertas naturalmente nos troncos são tão grandes que permitem que caibam lá dentro várias pessoas adultas e como os troncos são ocos podem servir de cisternas colectivas em tempo de seca, de celeiros - e também de prisões e de sepulturas.
O embondeiro faz parte do imaginário colectivo dos africanos e em algumas regiões é considerado um intermediário entre Deus e os homens e venerado como representação de entidade sobrenaturais, sendo amarradas aos seus ramos fitas, adereços e ex-votos.
Uma das lendas africanas conta que o embondeiro, por ter inveja das outras árvores, foi castigado pelos deuses, e posto de cabeça para baixo: a copa foi enterrada e as raízes ficaram para cima. Quando se vê um embondeiro fossilizado, compreendemos com facilidade a origem da lenda... (retirado de um sítio na Internet)

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