sábado, 5 de julho de 2014

Quase a cumprir-se o sonho

Ano de 1994

Ao longo desse ano muitas foram as imagens que chegaram até nós dos massacres no Ruanda, dos telejornais que abriam e fechavam com as imagens horríveis, sobretudo de crianças e mulheres, vítimas de uma guerra que não pediram para acontecer, da fome, das epidemias várias, das fugas em massa para outros países e para os campos de refugiados, enfim, de tudo aquilo que deita por terra o sonho egoísta de querer conhecer aquelas terras.
Sucediam-se reportagens que me faziam repensar a minha maneira de estar na vida e questionei-me imensas vezes sobre o curso que tinha tirado. Porque é que não tinha seguido enfermagem ou medicina para poder partir e ajudar aquelas pessoas? Porém, era professora e, naquele momento, não necessitavam lá de professores mas de outros profissionais que os pudessem ajudar a manter ligados à vida com a dignidade de seres humanos, com direitos que deviam ser respeitados e que tantas vezes eram violados.
A seguir, vieram as notícias e as imagens, igualmente chocantes, do Curdistão, da Tchetchénia, da Sérvia. Cada vez que via partir contingentes de ajuda humanitária, ficava desiludida por ter escolhido uma área que não servia para nada nesses locais. E confesso que era para África, não sei o por quê desta obsessão, mas era para este continente que queria partir.
Entretanto, fui contactando mais de perto com pessoas cuja opção de vida fora o de deixar o nosso país e viver em paragens longínquas de Angola e Moçambique onde, ainda que com muitas dificuldades, levavam uma vida dedicada aos mais necessitados.
Tratava-se de missionários, nomeadamente alguns da minha vila que, quando regressavam à terra natal, traziam inúmeras histórias de lutas e conquistas, sucessos e insucessos, mas sobretudo de uma vida repleta, onde o importante era a aprendizagem que se fazia, com quem tinha tão pouco mas dava tanto.
Digeria avidamente as histórias contadas por um missionário que viveu em Moçambique anos a fio e que, ainda que doente, não deixava a sua comunidade do mato, na província de Nampula. As palavras, simples e sábias, saídas da sua boca ficavam gravadas na minha memória. Contava como era deslocar-se pelo interior do mato, sabendo que havia perigos (a região Norte de Moçambique esteve em guerra mais tempo e ali a vida não era nada fácil) mas sem nunca ter desistido. Relatava, com entusiasmo, como era contactar com aquelas gentes, com fome de pão, claro, mas também com fome de Deus. Morreu lá e lá quis ficar sepultado, num lugar no meio do nada, como os seus. Dizia ele que era tão perto de lá ao céu como de cá. E a sua vontade foi cumprida.   
Sem nunca pensar em ser consagrada, e depois de ter travado a minha luta interior durante anos, sem a exteriorizar, decidi fazer uma experiência como voluntária num desses países, sobretudo nas regiões onde viviam pessoas da minha região, porque sentia a segurança de ter alguém por perto que já tivesse uma grande experiência no terreno.
A ideia foi amadurecendo e parecia cada vez mais próxima de concretizar-se, sobretudo depois de escutar o testemunho de uma conterrânea que fizera a experiência de um mês em Angola, no ano de 2003.


dezembro de 2004

Nesta altura, abordei elementos ligados ao voluntariado missionário, pois a minha vida tornara-se um tanto estática, com caminhos traçados, mas sempre os mesmos. Não digo que entrara num marasmo, contudo sentia-me apagada, com objectivos, mas comezinhos. Os dias eram passados entre a escola e a casa, as saídas com os amigos e algumas actividades com os jovens.
Havia um vazio em mim, sobretudo depois de concluir mais um ciclo de estudos, um vazio que não sabia explicar e o fantasma do apelo pelo continente africano pareceu renascer, remoendo lentamente o meu interior. Se sempre desejara partir, e nunca o fizera, por comodismo, mas também porque a opinião dos outros contava muito, ou ainda porque a vida profissional me absorvera demasiado tempo. Todavia, naquele momento reunia condições para o fazer. Deixara de parte a ideia peregrina de participar numa aventura, num safari, de conhecer tribos e belas paisagens porque isso não me preenchia integralmente. Podia ser vivido no momento, mas logo teria o seu termo, não daria para criar laços.
O facto de ter procurado uma instituição ligada à igreja, prendeu-se com a formação dada pela minha família, com os valores que sempre pautaram a minha vida e por saber que normalmente estas organizações estão no terreno, em locais menos acessíveis, onde há mais necessidade de ajuda e não buscam fins lucrativos. Acresce, ainda, o facto de saber que estas instituições estão há muito tempo espalhadas pelo mundo, que têm feito trabalhos notáveis e são aceites pelas populações, têm por vezes mais meios para fazer chegar a palavra mas também os projetos que gostaríamos de ver concretizados.
Agora que atingira outra maturidade, tinha mais disponibilidade e até um conhecimento mais real das instituições que trabalham no terreno, das suas necessidades, era tempo de tomar uma decisão. Por isso, tomadas as diversas diligências com o responsável pelo Secretariado Diocesano de Animação Missionária da minha diocese – Aveiro. Iniciei, em Janeiro, uma formação para voluntários que se preparavam para uma experiência de curta duração num país africano ou sul-americano.
De Janeiro a Julho, aos sábados de manhã, de quinze em quinze dias, ocorreram uma série de reuniões, encontros de partilha de experiências, onde participavam mais de vinte pessoas que tinham em comum a vontade de partir. Um dos primeiros e decisivos testemunhos presenciei-o, logo no início, com um padre colombiano que estava de passagem por Portugal e que se encontrava em Lwena – Angola, o lugar onde havia precisamente pouco tempo tinha terminado a guerra, cujos relatos e as fotos me deixaram tão apreensiva quanto desejosa de partir. O campo de acolhimento aos refugiados era a sua grande família e os voluntários que com ele tinham partilhado um mês ou mais de experiência ajudaram-no a erguer casas, a acompanhar comboios de ajuda humanitária num lugar recôndito de Angola onde faltava quase tudo, excepto uma desenfreada vontade de viver e reconstruir o que a guerra tinha destruído. Houve uma frase que deixou no ar aos candidatos a voluntários e que nunca mais esqueci: “Se queres ser voluntário tens que ter cabeça para pensar, mãos para trabalhar e coração para amar.”
Outros testemunhos foram-se sucedendo, vindos de outros voluntários, ou de missionários, oriundos de diversos locais como Angola, Guiné-Bissau, Brasil e Moçambique. À medida que o tempo avançava iam-se criando laços entre os candidatos a voluntários, os formadores, e os que iam dando os seus testemunhos de uma experiência vivida. A frase que mais vezes escutei, pronunciada por quase todos os que tinham feito a experiência era: “Partimos com a noção de que vamos levar muito mas, na verdade, somos nós quem traz mais.” Pelo caminho foram ficando candidatos, uns por indisponibilidade face aos seus empregos, outros porque descobriram que ainda não estavam preparados para partir.
Ao todo, no mês de Maio eram 17 os voluntários de Aveiro que deram o seu sim definitivo e cujas idades estavam compreendidas entre os 18 e os 50 anos e das mais diversas áreas (professores, diácono, enfermeira, engenheiros, Assistentes Sociais e vários estudantes universitários). Os destinos de missão eram Angola, Moçambique e Brasil. Todavia, a febre hemorrágica em Angola deitou por terra a partida de voluntários para ali. A missão que me estava destinada era em Benguela. Mas não era seguro partirmos. Reorganizados os grupos, ficou estabelecido que três dos voluntários partiriam para o Brasil – Amazónia - e os restantes catorze para Moçambique, a fim de trabalhar junto dos Salesianos, a congregação que nos receberia esse verão.
Entretanto, solicitaram-nos que facultássemos o nosso Curriculum Vitae, mencionando aquilo que fazíamos cá e o que estaríamos dispostos a fazer em terras de missão. Sabia que os Salesianos dedicavam uma grande parte do seu trabalho ao ensino. Por isso, qualquer local era passível de ser a minha casa durante o mês de que dispunha para esta missão de voluntariado. Porém, coloquei-me à disposição dos responsáveis pelo grupo para me atribuírem o local onde a minha prestação fosse mais necessária, tendo a consciência que num mês iria fazer muito pouco.
Os diversos locais de missão foram, assim, destinados aos diferentes grupos de voluntários, em junho, de acordo com as necessidades dos centros para onde iríamos. A partir desse momento desenhava-se com mais nitidez a realidade da partida. Soube que ficaria alojada e a trabalhar na Delegação Salesiana de Maputo e que o trabalho que me estava destinado se prendia precisamente com a minha área de formação – a correcção de uma tradução do Francês para o Português de manuais, bem como a elaboração de materiais didácticos para os complementarem. Não dispunha de muito mais dados, mas isso bastava-me para saber que podia dar o meu contributo, da melhor maneira pois era grande a vontade de partir. E talvez pudesse conhecer um pouquinho mais da realidade daquele país, do qual apenas conhecia alguns pormenores, dados por quem por lá tinha passado em férias, em trabalho ou em missão.
Da euforia inicial à tomada de consciência da realidade que estava prestes a enfrentar foi um salto. Para poder ter mais referências acerca do meu trabalho, de poder eventualmente munir-me de materiais necessários, contactei o responsável pelo acolhimento aos voluntários em Maputo. A voz da pessoa que me respondeu do outro lado parecia transbordar de uma alegria contagiante, era serena e, embora num português misturado com o inglês da sua terra natal – Goa - pôs-me ao corrente daquilo que seria o mês mais curto e mais apressado da minha vida, contrariando aquilo que várias vezes escutara a quem partira para terras de missão: “Lá vive-se a um ritmo muito lento, as coisas vão acontecendo”. Ainda agora recordo a frase “Maria, você vais ter muito trabalho!” que, inicialmente, me assustou um pouco, pois não sabia se estava à altura de responder ao desafio que me estavam a lançar, mas tornou-se, ao mesmo tempo, nisso mesmo, um desafio à minha capacidade de resposta.
O tempo que mediou esta conversa, os últimos encontros entre os voluntários, as diligências necessárias à partida, a recolha de fundos para auxiliar as comunidades que nos acolheriam, passava velozmente, coincidindo com a época de maior trabalho na escola. Um turbilhão de sentimentos começava a bailar no meu coração, dividindo-o entre a vontade desenfreada de partir e as dúvidas inerentes a quem vai pela primeira vez numa missão de voluntariado. No entanto, nunca me ocorreu desistir. Pelo contrário!

A minha família, que de início não apoiara muito esta minha tomada de decisão, há muito que se mentalizara que esta etapa da minha vida tinha que ocorrer e que estava prestes a cumprir-se. Foram fortes e seguros no seu apoio, tanto moral, como económico. Na minha paróquia muitas pessoas se uniram para dar o seu contributo. Houve uma grande solidariedade e espírito de ajuda, mesmo por parte de quem tem dificuldades. Poucos dias antes da partida, por entre alguma emoção, muitos foram os que afirmaram estar sempre comigo, ainda que uma grande distância nos separasse. 

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