28 de julho de 2005
Por volta da meia-noite os catorze voluntários que partiram para
Moçambique começaram a chegar a Aveiro, ao local combinado, com as bagagens a
“rebentar” de tanto peso, entre os seus pertences, os materiais a distribuir,
medicamentos, livros, bolas, jogos, para sermos transportados a Lisboa, de onde
partiríamos cerca das dez da manhã. Destino – Moçambique.
Até às duas da manhã, ainda pudemos partilhar com as famílias e amigos os
últimos momentos, por entre instantes de euforia e de silêncio, que cada um ia
gerindo da melhor forma possível. De uma coisa todos tínhamos a certeza:
estávamos juntos e partiríamos dali a algumas horas. Tinham-nos contado que
alguém desistira mesmo antes de entrar no avião mas não me parecia que, de
entre os que ali estávamos, houvesse alguém nessas circunstâncias. Entre nós
havia dois voluntários que no ano anterior tinham estado em Moçambique e
Guiné-Bissau e penso que nos transmitiam alguma serenidade, se bem que também
para eles fosse uma nova experiência.
A viagem entre Aveiro e Lisboa, de autocarro, foi partilhada com alguns
antigos voluntários que nos quiseram acompanhar e foi passada entre conversas
de circunstância, alguns aproveitaram para dormitar, outros viram um filme num
computador portátil. Enfim, ocupou-se o tempo… Isto porque ainda teríamos muito
tempo pela frente antes de deixarmos Portugal.
Já no aeroporto, a ansiedade inerente ao longo compasso de espera entre o
“check-in” e a entrada no avião, começou a apoderar-se de mim. A noite fora
passada em claro. Não
conseguira pregar olho. Apesar de algum cansaço, a alegria reinava entre os 14,
rodeados de malas e das pessoas que formavam a longa fila para as despachar,
alheios aos nossos sentimentos. Entre os muitos turistas que iriam passar
férias a Moçambique, os estudantes que regressavam ao contacto com os seus,
estavam 14 cidadãos cuja ida para aquele país tinha outros objectivos. Entre o
momento em que despachámos as bagagens e a entrada para o avião, houve um longo
compasso de espera. Passaram-se umas longas três horas. Mais uma vez reinava um
misto de algazarra e silêncio, que quando alguém se dava conta tratava logo de
neutralizar.
O avião deveria ter saído de Lisboa por volta das dez da manhã mas saiu
apenas pelo meio-dia. Depois de acomodados, quase todos juntos, havia uns mais
faladores, outros mais apreensivos. Disseram-nos que faríamos uma breve escala
no Gabão para abastecer o avião e apercebi-me que já não seriam onze horas que
nos separavam do nosso destino mas um pouco mais. A ansiedade tornava-se cada
vez maior. Para a combater, como sempre, tentava manter diálogo com os meus
companheiros de viagem.
Ao sobrevoar aquilo a que chamo a “longa travessia do deserto” e porque
era dia, pude contemplar durante bastante tempo a longa mancha, primeiro mais
avermelhada, depois amarelo-esbranquiçada do deserto africano. Ao mesmo tempo,
o azul do céu era muito forte e desfilava, sempre igual, diante dos meus olhos.
Todavia… era sempre a mesma paisagem e, dentro do avião, sempre os mesmos
rostos. Já não havia posição, parecíamos 280 “sardinhas entaladas” numa enorme
lata voadora que nunca mais chegava ao seu destino.
A aproximação ao aeroporto de Libreville, no Gabão, trouxe-me um pouco de
alívio. Uma enorme mancha de areal, de mar e de palmeiras fazia adivinhar um
local paradisíaco! Tínhamos passado cinco longas horas ali fechados e agora,
pensava comigo mesma, podia desentorpecer um pouco as pernas. Tentei calçar as
botas que há muito descalçara… Porém verifiquei que era um esforço inglório
pois os pés havia muito tempo que tinham inchado. Também não valia de nada!
Ingenuidade a minha pensar que ir sair do avião pois isso era impossível.
Durante uma hora e meia tivemos que nos manter absolutamente sentados, sem sair
daquele enorme pássaro agora parado, cercado de militares, numa pista de
aeroporto de um pequeno país de que só conhecia o nome. Depois disto, só
restava a resignação e esperar que as outras horas passassem mais depressa
porque a noite se aproximava.
Novamente no ar, o sol ia declinando no horizonte, foi um momento mais ou
menos raro pois nunca o havia presenciado daquela forma. Aconselharam-nos a
fechar as minúsculas persianas das também minúsculas janelas do avião. Passaram
um filme, mas já o tinha visto. Por entre a leitura de mais umas páginas de um
livro que me acompanhava, a escrita de umas linhas no meu caderno de
apontamentos, a tentativa frustrada de tentar descansar um pouco, as conversas
momentâneas com outros passageiros ou com os companheiros de missão que ainda
se mantinham acordados, sempre olhando para o mapa do percurso que aparecia nos
monitores do avião que indicavam a nossa posição em relação ao local do
destino, o tempo lá foi passando.
Eram cerca das duas da manhã quando o comandante anunciou a nossa aproximação
ao aeroporto de Maputo. Acordei do marasmo em que havia mergulhado há algumas
horas, resignada pelo tempo de espera que nos separava do encontro com os
nossos anfitriões que nos aguardavam fazia muito tempo. Vislumbrei do ar aquilo
que me parecia uma enorme cidade com milhares de luzinhas e comecei a cair na
realidade à medida que as luzes se tornavam mais próximas. Estava mesmo a
chegar a Moçambique! Era chegado o momento tão esperado!
Sempre ouvira dizer que o primeiro impacto com África era marcante… O meu
foi um pouco frustrante, ao início, embora tenha sentido, ao sair do avião uma
lufada do calor deste continente, um cheiro diferente a pairar no ar. O tal
cheiro de África de que toda a gente fala! Este dia ainda estava longe de
terminar! A caminhada pela pista do aeroporto com as bagagens de mão pesadas, a
espera para passar a alfândega e o reaver as nossas malas durou mais de uma
hora. Acrescente-se que ao verem tanta gente junta e tanta mala, surgiu o
inevitável: "Faz favor de a abrir as malas!" Claro está que ao verem
alguns dos materiais de trabalho que levávamos, como uma mala cheia de material
para auxiliar a nossa colega enfermeira em Tete (seringas, soro, medicamentos,
ligaduras…) logo ali nos pediram dinheiro e queriam apreender a dita mala, mais
uns livros que levava na minha e produtos de higiene pessoal). Tomei a palavra
em nome do grupo: "Não temos dinheiro. Estamos a chegar e somos
voluntários. Este material que aqui vê, senhor agente, foi recolhido por nós,
em Portugal, e é para ajudar os seus, lé em Tete, onde sabemos que existem
poucos recursos no hospital. Acha que vamos deixar isto aqui para ser vendido?
Não pense que vamos deixar este material aqui, meu amigo!" Falei em tom
ríspido, pois estava cansada e imaginava os problemas que ia ter. Afinal era um
agente da autoridade! E não conhecia bem as regras do país, embora já nos
tivessem relatado casos bem mais problemáticos em Angola. Mas, se a mala tinha
passado em Lisboa, por que não haveria de passar ali? E continuava o polícia:
"Sabes, mamã, a gente está a pedir algum dinheiro para comprar refresco e
euro serve". "Pois - respondi - mas a gente não tem euro, nem
metical." Na verdade, não tinha muito dinheiro e não me apetecia ser
conivente com a corrupção, embora pensasse que o homem, provavelmente estaria
ali há muitas horas e até teria fome. Mas decidi manter a minha posição. Apenas
referi que íamos trabalhar com os Salesianos que já estavam há muitas horas à
nossa espera. O semblante do homem mudou. Abriu um largo sorriso e disse-me:
"Vocês vão trabalhar com os salesianos ali na missão de São José? É que eu
andei lá na escola. Moro lá perto, no bairro do Chamanculo". O sorriso
daquele homem enterneceu-me e abrandei a minha rispidez: "É verdade, vimos
lá de Portugal, para trabalhar em vários locais, em Maputo, em Inhambane, em
Tete e lá mais para o sul. Como somos muitos…" O polícia mandou-nos fechar
as malas, seguir viagem e ainda nos desejou um bom trabalho.
Aquele momento foi marcado por desespero e preocupação, embora não quisesse
demonstrá-lo perante os outros voluntários, mais jovens. Um turbilhão de
emoções deixava-me meia anestesiada. Em suma, estava já na terra onde ia
cumprir um sonho que tinha alimentado durante tanto tempo mas, ao mesmo tempo,
comecei a pensar como ia ser passado todo esse mês, se corresponderia ou não às
expectativas que tinham depositado em mim, embora convicta de que estava ali
pronta para cumprir a minha missão.
O encontro com os nossos anfitriões foi algo de inexplicável. Eram cerca
de seis pessoas que nos esperavam, pacientemente, como só os Moçambicanos sabem
fazer. Por entre eles, pessoas de várias nacionalidades e o meu interlocutor,
com quem apenas contactara por telefone, mas que foi muito fácil identificar.
Lá estavam todos, cansados, mas de sorriso largo e franco, recebendo-nos de
braços abertos.
O meu primeiro choque com a grande cidade, que seria a minha terra por um
mês, deu-se no caminho para a Delegação Salesiana de Moçambique. Não foi um
longo percurso, mas foi desolador. Onde estavam as luzinhas que vira do ar?
Seriam uma miragem ou delírio causado pelo cansaço de tantas horas sem dormir,
dentro de um avião? O caminho era escuro e não pude ver quase nada. Mais tarde
descobri o porquê deste fenómeno que me intrigou e me manteve silenciosa
durante estes minutos. As árvores eram mais baixas do que os candeeiros de
iluminação, por isso mal se viam!
A chegada à Delegação foi o
segundo choque. A casa situava-se por trás de muros altos e cheios de
pedacinhos de vidro. A abrir um enorme portão, estava um guarda armado. “O que
é isto?” – interroguei-me silenciosamente. “Onde é que vim parar? Isto é a sede
de uma instituição religiosa. Porquê este aparato? Não estou a ver bem. Deve
ser do sono. Moçambique está em paz há muito tempo e não nos falaram em tanta
segurança!” Mais tarde também percebi o porquê deste “aparato” todo. Mas
confesso que foi um susto e tanto!
Depois de feita a recepção, já com as bagagens amontoadas numa sala,
fomos “mata bichar”. Em cima da mesa
estava um pequeno cartão com o nome de cada um de nós, onde se podia ler “Hoyo-Hoyo, Maria” (“Bem-Vinda”). Li-o em
silêncio e guardei-o no bolso. Entretanto, disseram-nos que preparássemos a
mochila com o essencial para 2 dias e os sacos-cama, pois iríamos descansar um
pouco para, por volta das 6 da manhã sairmos para um encontro com jovens que
vinham de várias regiões de Moçambique, numa localidade a cerca de 90 Km de Maputo (Namaacha).
Acomodaram-nos a todos em S.
José de Lhanguene, a missão Salesiana, a cerca de 500 m da casa da Delegação.
Eram cerca de 4h e 30 da manhã e o dia começava já a dar sinais de querer
nascer. Penso que o mesmo sentimento perpassou por todos ao mesmo tempo – tomar
um banho – pois mal pousámos as mochilas nas camas improvisadas no salão da
escola de S. José, corremos aos balneários para tomar um duche. Já era dia 30 e
estava acordada desde as 7 da manhã do dia 28!
Comprometi-me a despertar as minhas colegas e coloquei o despertador para
as 5h e 45. Despedimo-nos dos que partiriam para Tete nessa manhã. Deitei-me já
vestida com a roupa com que sairia daí a cerca de uma hora e caí profundamente
na cama, não sei bem para que lado. Quando o meu telemóvel - despertador tocou,
levantei-me atordoada e vi que todas dormiam serenamente. Acordar algumas não
foi tarefa fácil, mas à hora prevista estávamos preparadas para partir!
Naquela fresca manhã, uns iniciaram a viagem de camião, juntamente com os
muitos jovens que se aglomeravam à porta da missão, outros de jipe, rumo à
Namaacha. Por estradas que, na maior parte do percurso, eram buracos com
bocados de estrada, vislumbrava um pouco da savana moçambicana, com as
montanhas da Namaacha a separar Moçambique da África do Sul ao fundo. Como
estava completamente afónica, tive o privilégio de ir de jipe, um velho Rover UMM,
todo o terreno mesmo, pois já andou por todo Moçambique. Chamamos-lhe o
"Bambo Rover", pois quem mais o usa é o Pe. Bambo, o responsável
pelos jovens. De vez em quando, tem que ir "à clínica", mas continua
connosco. Já apareceu duas vezes na Namíbia, fruto da intervenção dos amigos do
alheio, embora seja sempre localizado. Acho que já é conhecido das autoridades!
Começava aqui o meu contacto com o Moçambique profundo.
Fomos recebidos como iguais, misturando-nos pelos diversos grupos. Esta
foi uma experiência marcante. Acho que não poderia ter começado da melhor
maneira! Vi gente que se entregava às tarefas com um espírito verdadeiramente
entusiasmado e, apesar do enorme cansaço que se apoderava dos meus olhos,
tentei mantê-los abertos para observar bem e, tal como tinha tantas vezes
escutado, durante a formação, primeiro ouvi e depois falei. Fiquei
impressionada com muito do que escutei àqueles jovens, que se reuniam para
debater temas interessantes, que viviam a experiência cristã com grande
entusiasmo. Ainda durante a manhã, tivemos que descansar um pouco. O
internato-escola feminino que nos albergou tinha sido alvo de obras em alguns
sectores e estava muito bem cuidado. As crianças estavam de férias portanto não
as conhecemos. Ainda assim cruzámo-nos com algumas meninas que por ali andavam,
em busca de comida, que lhes era dada imediatamente. Vi meninas, de gorro, e
uma camisola de manga comprida, porque estava realmente frio, com um prato em
cima das pernas, comendo, com a mão, um pouco de arroz cozido, dado pelas
irmãs. Não havia carne, apenas uns parcos feijões. Mas… era melhor do que nada!
As jovens que partilhariam connosco o espaço no dormitório do lar,
estenderam as suas esteiras no chão, não paravam de cantar e dançar. Ali fazia
algum frio (é a montanha) e talvez esta fosse uma forma de o esquecerem.
A hora da refeição foi algo que posso considerar como a "primeira
prova", embora não estivéssemos em nenhum concurso, pois não foi
propriamente igual à que estamos habituados. Almoçámos com os grupos em que
estávamos inseridos e, quando nos distribuíram um prato e um copo de plástico,
bem como uma colher, amassada e com ferrugem, senti os olhares todos voltados
para mim, como se esperassem a reação da “branca” a uma realidade diferente.
Mais tarde, em conversa com os meus companheiros de missão disseram-me que
tinham tido essa mesma impressão e acabámos a rir, embora notasse no rosto dos
mais novos alguns sinais de apreensão. Tentei controlar alguma ansiedade
também. Afinal, já tinha participado em acampamentos e as condições eram mais
ou menos semelhantes! Tirando a colher ferrugenta e a água num balde, que
enchiam para o nosso com um outro copo, e de que desconhecíamos a origem…
Tinham-nos feito tantas recomendações na consulta do viajante: "Bebam só
água engarrafada, não comam nada cru, descasquem bem os frutos… Mas, o que
fazer?" Acabei por comer com a mão o saboroso pedaço de frango no
churrasco que estava no prato, com arroz e alguma alface e que tínhamos visto as mamãs preparar ao longo da manhã. Bebi a minha água e,
no final, fazendo como os outros, lavei o prato, o copo, a colher e deixei numa
vasilha a escorrer. Ali ninguém era empregado de ninguém e ninguém tinha
privilégios! É justo.
Estes dois dias foram a “prova de fogo” em solo moçambicano e, ainda que
estivéssemos juntos, cada um foi-se aproximando mais daqueles que pertenciam ao
seu grupo. Entretanto, estes jovens tentaram ensinar-nos a cantar e dançar como
eles, o que não conseguimos de longe igualar. Definitivamente não somos como
eles! A dança está-lhes no corpo, no sangue. Foi fantástico!
À noite, quando nos preparávamos para dormir cada uma em sua cama, vimos
que as jovens iriam dormir no chão, nas esteiras. Decidimos juntar várias camas
e dormimos enroladas no saco-cama, umas para os pés, outras para a cabeceira.
Parecíamos vários chocolates “Twix”. Propusemos às nossas companheiras que
juntassem as camas e fizessem o mesmo. Aceitaram com um largo sorriso. Pensei
que iria dormir um pouco essa noite mas… as nossas companheiras de camarata
tagarelaram toda a noite. Acordaram bem cedo, logo a cantar e, quando peguei
num pacote de bolachas para tirar duas ou três, escutei uma vozinha a cantar: “Partilha…
Partilha…”. Dei-lhe o pacote e este desapareceu em segundos. Outro pacote,
tirado da mochila também desapareceu das minhas mãos. E as meninas riam como se
tivessem ganhado um prémio. E a festa continuou quando as minhas companheiras
ao acordarem ao som da festa! Começam a tirar das mochilas as bolachas ou
chocolates que tinham. Juntaram-se muitas mais meninas e fizemos um
"mata-bicho" fenomenal. O que para nós seria um simples enganar o
estômago com umas bolachas, antes de tomar o pequeno-almoço, para aquelas
meninas foi um momento de festa, como se estivessem a celebrar um aniversário
com um belo bolo! E embora estivesse com fome, acho que me esqueci disso.
Entretanto, enquanto nos dirigíamos timidamente para os duches, de água
fria, o que custou um pouco pois na Namaacha faz frio em agosto, as meninas
corriam também para lá, enroladas na “capulana”,
aquele pedaço de tecido colorido que serve para tudo: colocar em redor da
cintura nos momentos de festa, tapar o corpo de noite, durante o sono, enrolar
o corpo enquanto muda de roupa, embrulhar um recém-nascido, uma criança, um
morto, transportar as crianças às costas para onde quer a mãe vá e que a mantém
unida ao seu filho muito mais do que as nossas mães. Impressionante a forma
como um simples pedaço de tecido pode ter tantas utilidades! E nós, com
diferentes peças de roupa para cada momento!
O dia teve como ponto alto a primeira eucaristia em solo moçambicano,
animada pelos cantos e danças dos jovens, que os foram preparando pelo caminho.
Entretanto, havia um cântico que conhecia e que entoei com as meninas que logo
sorriram dizendo: “Mulunga também sabe!”, agarrando-me pelo braço e puxando-me
para o meio delas para cantar. Sorri, e em tom mais ou menos sorridente disse:
"Foi mulandi que me ensinou!" Eram as duas palavras que sabia em
dialeto.
Apesar de demorar muito mais tempo que uma celebração aqui na Europa, não
damos pelo passar das horas. Deixamo-nos embalar pelo canto e o nosso corpo não
resiste à dança, às palmas, ao som do batuque que nos puxa sem que demos por
isso. A emoção fica à flor da pele e, inesperadamente, uma lágrima teima em
sair… É tão diferente aqui! O calor da terra faz com que o calor do povo o
torne mais expansivo! E há outros acontecimentos que para nós são novidade. A
espontaneidade dos actos, como por exemplo aquela que se vive no momento do
ofertório, em que as pessoas trazem do pouco que têm em casa para ofertar –
frutos, pão, legumes e até animais! Uma criança que chora e uma mãe ou uma avó
que a puxa para a frente, na capulana, e lhe dá a mama, porque não tem chupeta.
Tudo isto é tão natural.
O regresso a Maputo foi outro momento memorável. Já se sentia a
aproximação do anoitecer quando subimos todos para um camião da missão.
Colocaram esteiras no chão, uns bancos dos lados e lá fomos nós, de cabelo ao
vento fresco daquele entardecer. Os 90 Km que nos separavam do nosso destino foram
passados rapidamente, pois entre cantos e anedotas, enrolados nos sacos-cama,
nas capulanas era como se nos conhecêssemos há muito tempo. Apenas me ocorria
que a estrada era toda esburacada, quando o camião "saltitava" na
estrada, fazendo-nos rir de tanto encontrão que dávamos uns nos outros. Apesar
do enorme cansaço que se apoderava do meu corpo, do frio e da rouquidão que
quase me impedia de falar, aproveitei para reflectir naqueles dois dias que ali
havia passado. Não havia descrição possível. Não me afloravam outros
pensamentos senão o de que naquele momento fora chamada para estar ali, no meio
daquela gente a viver tudo aquilo. Ainda não começara a minha caminhada de
voluntária, mas iniciara-se uma nova etapa da minha vida. Estar ali, no meio
daquela gente era uma experiência e tanto e, nem que fosse apenas por isso, já
tinha valido a pena percorrer os longos 10 000 Km que separam o
meu país de Moçambique!
Ao chegar à Delegação Salesiana houve mais um momento para recepções e
festa. Mais uma vez escutámos palavras amigas. Havia gente alegre que nos
recebia com entusiasmo. Esta foi a primeira noite que dormi a sério. Devo
ter-me deitado pelas 22 h e acordei 12 horas depois, recomposta. Nem parecia
que já não dormia havia tantas noites e este primeiro dia foi passado a
inteirar-me das minhas funções, no local de trabalho, por entre uma deslocação
à Moamba (80 Km
de Maputo) e à Matola (12 Km )
para deixar as bagagens de alguns companheiros.
E assim começou uma rotina que durou 26 curtíssimos dias. Levantava-me
por volta das 6 da manhã, com as crianças da escola ao lado a brincar, depois a
cantar o hino nacional, antes do início das aulas. Começava a minha batalha com
o computador por volta das 7h 30m, fazendo a pausa para o almoço pelas 12h 30m.
Recomeçava por volta das 14 h até à hora do jantar. No final da refeição,
sempre animada, depois de alguns dias de habituação à condição de ser a única
mulher num grupo exclusivamente masculino, seguiam-se uns dedos de conversa com
a comunidade e o trabalho continuava até tarde porque urgia terminar o desafio
que me haviam proposto. Aparentemente, o trabalho era fácil, prendendo-se com
correcções de traduções do Francês para Português de manuais para a disciplina
de Formação Humana – Para uma Educação
aos Valores face ao HIV-Sida e da concepção de materiais de apoio. Contudo,
os dias sucediam-se a um ritmo veloz e, a cada dia que passava, o trabalho
avolumava-se, acercando-se de mim o temor de não o concluir. Estavam sempre a
alertar-me de que podiam surgir imprevistos e que as coisas fluíam a um ritmo
mais lento do que aquele a que estava habituada. Porém sou persistente e por
vezes não dava ouvidos a quem já ali vivia há muito tempo.
Um dia aconteceu mesmo aquilo para que tantas vezes me tinham alertado.
Falhou a electricidade. Enquanto a bateria do meu portátil durou, alimentei a
esperança de que a energia voltasse e fui trabalhando. Todavia, ela não veio e
entrei em estado de angústia. “E agora, o trabalho vai atrasar. O que faço?” Claro que já ninguém suportava ver-me
a cirandar de um lado para o outro, mais impaciente do que um pai que espera
pelo nascimento de um filho na maternidade. Foi então que me propuseram dar uma
volta pelo bairro do “Chamanculo”, o mais carismático da periferia de Maputo,
próximo da nossa casa, acompanhada por um dos jovens que vivia lá em casa,
conhecedor dessa realidade até porque tinha nascido ali perto. Sozinha, não
arriscaria a entrar lá…
Saímos de casa, de mãos nos bolsos, conversando sobre a nossa vida, o
stresse a que estava habituada e que ali parecia ter-se esbatido, embora naquele
dia não estivesse a ser fácil controlar a ansiedade porque o tempo passava.
Aprendi uma lição, com alguém bastante mais novo do que eu, enquanto
percorríamos os labirínticos "carreiros" de terra batida daquele
enorme bairro. A certa altura diz-me o Arlindo: “Vamos caminhando, pois por
vezes nem eu sei bem as saídas deste bairro e tem cuidado, podes ficar sem os
sapatos”. Confesso que o meu coração acelerou. Via-me num labirinto apinhado de
gente que passava e me olhava, pois branco raramente entra ali, muitas barracas
e umas tantas casas, algumas construídas sob bananeiras e mangueiras, com
chapas ou pedaços de arame a separar os pátios, animais e lixo, muito lixo. De
vez em quando, tínhamos que saltar poças de água ou montes de lixo, pois não há
saneamento. Para passar em determinados “carreiros” estreitos tínhamos que caminhar de
lado. Cruzamo-nos com imensas crianças que partiam ou regressavam da escola,
com mulheres que carregavam carvão ou bidões de água, com crianças às costas
embrulhadas na capulana e homens sentados em cadeiras de plástico à porta de
casa ou de pequenas banquinhas, postos de venda de tudo o que se pode imaginar,
como se esperassem por alguma coisa que nunca chegaria. Fomos ao mercado e
conversámos com algumas pessoas. Gente simpática e sorridente que não parecia
viver num lugar tão pobre e deprimente. Entretanto, os meus sentidos foram-se
abrindo a algumas realidades que nunca imaginei vivenciar num lugar como
aquele.
Já me tinham falado dos cheiros de África, mas senti-los penetrarem-me nas
narinas é bem diferente. Dos pátios das casas saíam aromas vários, primeiro
estranhos, depois agradáveis, da comida que as “mamãs” preparavam para a sua
família, nos braseiros das cozinhas improvisadas no exterior. Reparei que os
pátios, embora em terra batida, estavam limpos, alguns tinham esteiras
estendidas onde “mamãs” ou crianças se sentavam a preparar a comida (a ralar
coco, a pilar amendoim, a descascar mandioca…) ou a fazer aqueles penteados,
que os turistas consideram exóticos, mas que para eles são parte integrante da
cultura (passam horas a colocar “mechas” – extensões - e a fazer as tranças).
Houve dois momentos que ficaram registados na minha memória pois advertiram-me que deveria deixar a
máquina fotográfica ou qualquer bem material em casa se não quisesse ter uma
surpresa desagradável (apesar de tudo, levei a máquina escondida no bolso. Era pequena e foi um desafio tirar algumas, poucas, fotos). Encontrámos primeiro duas crianças, sentadas no chão de
um dos becos, com um caixote de papelão, atravessado por alguns ferritos, com
umas chapas penduradas, amarradas com um pedacinho de fio. Colocavam lá uma
bola de berlinde e, assim, jogavam matraquilhos! Permaneci alguns minutos a
olhá-los com espanto. Até onde pode chegar a imaginação do ser humano quando
este não tem mais nada! Saudei-os com um “olá”, mas estes ignoraram-me e
continuam o seu jogo, como se não quisessem ser perturbados. “Podem não ter
percebido, ainda não devem falar Português”, disse-me o Arlindo. Mais adiante, dois homens jogavam “damas” com um pedaço de cartão, onde desenharam os
riscos e com tampas de Coca-Cola e de cerveja a servir de peças. Esta forma de
jogar damas é muito comum por estas paragens. Não foi só aos meninos que vi
jogar, também encontrei muitos adultos. E ainda, uma das mais fascinantes
imagens (que noutra altura captei, à porta de uma casa), um carrinho totalmente
construído com latas de refresco e arame, que dois meninos exibiam sorrindo!
Também os saudei e, para minha surpresa, responderam-me sorrindo: “Bom dia,
mamã!” Perguntei-lhes se já tinham chegado da escola. Responderam-me que sim,
que tinham entrado às sete da manhã, saído às onze e que andavam na terceira
classe. Entretanto, perguntaram-me de onde vinha eu disse-lhes que vinha de
longe, de uma terra onde se fala português e onde morava o Eusébio. Tinham-me
contado que o nosso Pantera Negra havia nascido ali bem perto. Os meninos
sorriram e disseram-me: "Mana, falas tão bem português! E o seu país é
grande?" Respondi que era um pequeno país, que tinha praia, como ali em
Maputo, e que também havia pessoas africanas, que vinham de Angola, da Guiné
Bissau, mas também de outros países. Ainda ficámos por ali um pouco à conversa,
até que as mães os chamaram e o Arlindo me lembrou que tínhamos que regressar.
No regresso a casa, dei por mim a pensar uma vez mais naquilo que
observara e, de certo modo, senti alguma revolta. Por um lado, por ver que as
mulheres trabalhavam mais do que os homens, em casa, no mercado, nas banquinhas
da rua, muitas vezes ajudadas pelas crianças, por outro, por ver os homens
sentados, com a garrafa de cerveja na mão, e ainda era de manhã. Disse-me o
Arlindo, quando comentei com ele: "Maria, esta sociedade, apesar de
estarmos em Maputo tem a sua organização. Os homens no geral trabalham, alguns
deles, estiveram a trabalhar de noite. São seguranças privados". Ainda
assim, senti um certo desconforto, sobretudo em relação às crianças, com as
suas roupas já gastas, sujas da terra do caminho onde brincavam, os chinelos
cosidos com fios, ou os pés descalços, a falta de brinquedos, pois sei que os
meus alunos, os meus familiares têm tudo e não se interessam por nada e aquelas
crianças encontram formas tão interessantes para se divertirem. E conclui que,
naquele pedacinho de manhã aprendera tanto, sentira tantas emoções,
contraditórias, é certo, mas dei graças a Deus por ter faltado a luz e me terem
proporcionado momentos tão importantes.
Algumas vezes, ao fim do dia, ia até à missão de S. José de Lhanguene,
onde estavam duas companheiras. Jogávamos com os jovens, escutávamos as suas
histórias de vida, duras, muito duras, que tinham antes de encontrar a grande
família de que agora faziam parte.
Aos fins de semana, depois da ida às comunidades (Unidade 7 e Bairro do
Jardim) com os membros da casa, conhecendo diferentes realidades da mesma
cidade, ou dos seus arredores, saía com dois amigos, um voluntário português e
um cooperante espanhol. Fizemos várias incursões pela cidade de Maputo e pude
sorver um pouco da sua vida. Ao fim de semana o movimento é menos do que
durante a semana, numa cidade onde vivem cerca de 2 milhões de pessoas, mas consegui
observar alguns dos grandes contrastes que caracterizam esta cidade. De um
lado, a zona “chique”, a marginal das palmeiras, as vivendas altamente vigiadas e estranhamente bem
cuidadas, das embaixadas, dos edifícios dos bancos e dos hotéis, sem esquecer o
Polana, um dos ex-libiris dos tempos
do colonialismo, impecavelmente mantido, extravagantemente belo. Li, certo dia,
numa revista, em que a pessoa se manifestava sobre vários aspectos da sua
preferência, referindo que o Polana era um dos mais belos hotéis do mundo.
Subscrevo na íntegra essas palavras e não visitei senão a parte da recepção, os
salões do primeiro piso, a esplanada, a piscina em frente do Índico, o
restaurante e os jardins… Voluntário não tem tempo, nem dinheiro para estas
extravagâncias!
Como neste primeiro ano, tive o privilégio de ficar em Maputo, por que
não conhecer, se tinha a oportunidade? As avenidas são largas, com imensas
acácias que florescem no tempo do calor, em novembro e dezembro, embora nos
passeios exista bastante lixo e as calçadas tenham sido destruídas pelo
desgaste do tempo ou pelas raízes das árvores que teimam em espreitar à
superfície, levantando as lajes há muito desaparecidas. Temos que ter algum
cuidado para não tropeçar nas raízes ou cair num buraco do que deveria ser um
passeio, ou mesmo num tanque, hipoteticamente do saneamento, que em vez da
tampa tem um tronco de árvore.
Do outro lado da cidade, não muito longe das zonas bonitas, fica a outra
cidade, a dos prédios degradados, ou seja, onde a manutenção há muito não se
faz. No mesmo edifício vemos apartamentos pintados de azul, amarelo, branco,
outros com a tinta completamente descascada; uns sem janelas, outros com grades
que mais parecem prisões. Cada um cuida da sua habitação como muito bem lhe
apraz ou conforme o dinheiro que tem. Não podemos esquecer que a maioria da
população vive com pouco mais de 60 Euros mensais, o que não é nada. As ruas de acesso à cidade são muito confusas com trânsito caótico e muitos mercados, ou pontos de venda de todo o tipo de produtos que possamos imaginar, pessoas que circulam a pé, por entre os famosos "chapas" (carrinhas de 9 lugares transformadas em mini autocarros de 15 ou mais!)
Por isso, sobretudo ao sábado à tarde, é frequente encontrarmos os despojos dos diferentes mercados de rua, das feiras de artesanato, lixo, muito lixo. Plásticos e papéis que voam com o vento, pó das ruas que não foram ainda limpas e que nos deixam os olhos turvos. Vemos, alguns mendigos, homens,
mulheres e crianças remexendo nos poucos caixotes do lixo, a transbordar, em
busca de algo com que possam enganar o estômago ou que possam vender para poder
levar algum dinheiro extra para casa, antes que se faça a recolha do lixo.
Vemos também algumas crianças, vagabundeando pela cidade, desorientadas que,
quando abordadas por nós, logo se põem em fuga ainda que lhes digamos que
apenas lhes queríamos dar comida. Provavelmente teriam estado a cheirar cola,
para enganar a fome, e nem nos sabiam responder se tinham ou não fome.
Nas ruas, somos constantemente assediados, nos locais mais frequentados pelos turistas, por vendedores ambulantes que nos falam em Inglês e nos impingem todo o tipo de artesanato, atirando para o ar preços exorbitantes sobre pequenos objectos ou batiques. Mas, quando respondemos que somos voluntários, o preço desce para metade ou menos e alguns até deixam de nos seguir. Foi uma realidade que me deixou um pouco incomodada, se bem que cada um tenta a sua sorte como pode.
E um mês passou-se num abrir e fechar de olhos. Dois dias antes da
partida, o trabalho estava quase concluído e, já quase todos juntos de novo,
cada um foi contado as suas experiências, mostrando as suas fotos, questionando
o outro sobre o seu trabalho, a sua comunidade. Todos tínhamos diferentes
coisas para contar, embora em certos momentos me tenha isolado para terminar as
minhas tarefas. Uma voz, depois outra soaram acerca do meu trabalho solitário,
rotineiro e cujo contacto com as comunidades não tinha sido praticamente
nenhum, se comparássemos com os que tinham estado em Moatize (Tete) ou na Moamba
(interior do distrito de Maputo). Um misto de sentimentos atravessou o meu
coração, mas estava satisfeita porque estava a um passo de ver cumpridos os
desafios que me tinham lançado e pelos quais me colocaram naquele local e não
noutro. Pensei que talvez um dia também eu pudesse contar como era dar aulas a
meninos ávidos de saber, que percorriam a pé descalço, com os sapatos na mão,
vários quilómetros para vir à escola ou visitar comunidades do mato que em nada
se assemelhavam à cidade com que tinha contactado.
No penúltimo dia quiseram presentear-nos com um pedacinho de paraíso,
situado algures a cerca de 140 Km de Maputo – o Bilene. Foi um momento de
descontracção e, ao mesmo tempo de partilha e balanço daquele mês passado junto
dos Salesianos, numa experiência curta de voluntariado. Para além de
desfrutarmos da presença uns dos outros e de uma paisagem fantástica, foi um
momento de descontracção que não se esquece facilmente. Pudemos caminhar pela
praia, dando uma enorme volta pela baía até quase atingir as águas do Índico,
entramos pela baía dentro, andar alguns metros com a água, transparente e
quente, pelos joelhos e ver o fundo. A praia encontrava-se deserta por ser um
dia de semana e inverno, para eles!
De tarde, fomos surpreendidos por um grupo de jovens que vieram até à
praia jogar futebol. Se no início mostraram alguma relutância em partilhar
connosco a sua companhia, quando ganharam confiança e o primeiro jogo, parecia
que nos conheciam desde sempre. Distribuíram-nos sorrisos contagiantes e uma
alegria de viver que uma vez mais confirmava a minha constatação, igual à de
tantos outros que passam por estas terras – a de que este povo é feliz com
pouco, é hospitaleiro, simples e simpático. Talvez demasiado resignado, o que
nos deixa um pouco angustiados. No final, distribuímos canetas e rebuçados e,
parecia que lhes tínhamos dado um presente enorme!
Este foi também um dia de balanços. No momento da reflexão, cada um foi
explanando a sua experiência, num clima de boa disposição e nostalgia porque
dali a um dia voltaríamos à nossa realidade, à nossa vida rotineira, o que
estava a provocar em mim um certo desgaste.
Mais tarde, em tom de confissão e numa conversa mais intimista com o
responsável pela nossa presença, manifestei a vontade de regressar, pois senti
que a minha experiência tinha sido gratificante, por um lado, mas ficara
incompleta, pois houvera pouco contacto com as populações, com as comunidades…
Disseram-me que poderia voltar quando quisesse, dado que necessitavam do nosso
trabalho e da nossa presença; na área do ensino muito há ainda a fazer. Fiquei
feliz porque aquela experiência que os outros tanto apregoavam talvez pudesse
ser posta em prática e mais cedo do que imaginava.
No último dia, enquanto todos passeavam pela cidade, que já conhecia,
estive com a equipa de trabalho, num seminário sobre o HIV-Sida a apresentar os
resultados do nosso trabalho, que foi entretanto concluído durante a noite. A
satisfação do desafio cumprido foi a minha maior alegria pois, a partir da
tarde um sentimento estranho assaltava a minha alma. Uma lágrima teimava em
correr pela minha face. Não sei se de alegria ou tristeza… Por isso, isolei-me
um pouco, fazendo o meu próprio balanço daquele mês, aproveitando o facto de
deixar gravado o registo das fotos do grupo. O final da tarde foi passado em
conjunto, entre sorrisos e algumas lágrimas. O saudosismo começava já antes da
partida.
Quando esse momento chegou não foi fácil gerir as emoções, a confusão de
sentimentos que se gerou no meu íntimo… O avião descolou com duas horas de
atraso. Aos passageiros nada se comunicava. Retardava-se a saída, aumentava a
angústia de deixar para trás paisagens e pessoas que nos haviam marcado. Nenhum
de nós falava. Falar significaria agonizar ainda mais. Apenas nos olhávamos com
os olhos marejados de lágrimas e ao mesmo tempo interrogativo daquela tormenta
por que nos faziam passar. Notava-se muita inquietude por parte dos passageiros
e mesmo da tripulação mas nenhum de nós ousava sair do seu lugar, exíguo,
atravancado de bagagens. Previa-se uma viagem atribulada. E fazia um calor
insuportável.
Às duas da manhã deixámos Moçambique. Acho que por entre a emoção da
partida, aqueles primeiros momentos de voo parece que se apagaram da minha
memória. Só me recordo de tentar dormitar para esquecer os pensamentos
constantes que me afloravam à memória. Depois de mais uma paragem no Gabão, tal
como na viagem de ida, a viagem prosseguia e parecia que as horas nunca mais
passavam. A noite passou, fez-se dia e agora já pensávamos nos que nos esperavam,
nas nossas casas e a quem muito tínhamos que contar. Chegámos com cinco horas
de atraso e uma fome capaz de devorar o que aparecesse na nossa frente.
Quase vinte e quatro horas depois de deixarmos Moçambique chegávamos
finalmente a casa. O calor daquele país e a alegria daquele povo foram, nos
primeiros dias combatidos com o calor dos nossos familiares e amigos que
queriam saber tudo sobre a nossa experiência. Fiz um pedido a alguns: que me
deixassem primeiro “assentar” de todas as emoções vividas e que depois contaria
as aventuras daquele mês.
O regresso à escola e às actividades rotineiras foram normalizando as
dificuldades dos primeiros dias. Contudo, de noite dava por mim a pensar que
ainda estava em Moçambique e acordava às 5 da manhã, sem conseguir dormir mais.
Em certo momento pensei que estava perturbada, pois um mês não muda assim tanto
a vida de uma pessoa, mas a forma intensa como tudo foi vivido faz-nos, de
facto, mudar.
Ainda demorou algum tempo até que a minha vida retomasse o seu curso
normal. De uma coisa tinha a plena certeza: estava insatisfeita e voltar era um
objectivo a levar a sério no verão seguinte e por mais tempo!
Adorei a descrição...e não é que senti o cheiro das comidas da mamã?!!! Parabésn pelo teu trabalho e já tens uma leitora, aguardo o resto do relato!
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