sábado, 5 de julho de 2014

Introdução

26 de dezembro de 2006

            São três da tarde, sento-me em frente do computador para começar a preparar as aulas do 2º Período que se aproxima. Já passou o Natal, vem aí a Passagem de Ano e, logo a seguir, recomeçam as aulas. Tenho que pensar em preparar as de Português. Mas… porque será que não me sai nenhuma ideia para introduzir a nova unidade? Será ainda o cansaço do final do 1º Período? Será que me estou a precipitar, querendo recomeçar já hoje a trabalhar para a escola? Ainda falta uma semana! Todavia, uma semana passa depressa! Deixo-me ficar a olhar para o monitor, a ver se surge alguma ideia interessante. Entretanto, folheio, desinteressadamente, um manual escolar.
Empurro o computador para o outro lado da mesa. Abro um manual de Português. Começo a ler os textos. Não me ocorre nada. Olho pela janela, o sol brilha timidamente. Acho que vou até lá fora, observar as árvores de fruto, os carvalhos, os pinheiros e os eucaliptos em redor da casa dos meus pais e sorver um pouco do seu aroma, olhar para o fundo e ver os lameiros, o ribeiro que corre agora cheio, as pastagens bravias… Normalmente, quando fico sem vontade de estudar ou de preparar aulas, faço esta espécie de ritual. Saio um pouco e deambulo pelo pátio da casa ou pelos terrenos em redor dela. O verde das árvores, a calma do lugar trazem-me serenidade e alguma inspiração para iniciar ou continuar o meu trabalho. Relembro aquela frase, tantas vezes pronunciada em tom jocoso: “Que bom que é viver no campo!”
Saio à porta da cozinha. Sinto uma brisa fresca e, como não quero arriscar outra infecção respiratória, regresso ao seu interior. Cá dentro sempre está mais quentinho pois o aquecedor torna o ar mais agradável. Reabro os manuais.
Não. Decididamente hoje não me ocorre nada de interessante para propor aos meus alunos no início desta nova unidade. Revejo as aulas de Francês. Escolho um texto que aborda o problema do fast-food em oposição com o problema da má-nutrição em determinados países. Está decidido. Reorganizo o dossiê e arrumo-o. É bem mais fácil repensar as aulas de Francês!
O gato ronrona aos meus pés, move-se e distrai-me porque acabou de se voltar de patas para o ar para apanhar um pouco mais do calor emanado do aquecedor. Volto o olhar para ele, amacio-lhe o pêlo. Ele olha-me de soslaio, como se o estivesse a incomodar e retoma o seu sono por mim interrompido. Penso na sorte deste bicho que pode aquecer-se e passar os dias sem fazer nada, porque quando começa a miar sabemos que quer comer e vamos a correr encher-lhe o prato. Talvez porque seja época de Natal, ou porque esteja particularmente sensível, vem-me à lembrança que há pessoas por esse mundo fora que nesta altura passam frio, fome, não têm família, estão abandonadas a si próprias, não têm sequer um teto, quanto mais um aquecedor.
Volto ao computador. Reabro-o para registar uma ideia que me ocorreu para introduzir a Literatura de Tradição Oral. Acho que vou começar pela história de O olho do Lobo, de Pennac, quando o lobo mergulha no olho do menino Afrique e conhece o seu penoso percurso por África. Introduzo a unidade a contar uma história, onde se fala de um contador de histórias africano… E porquê africano? Porque África não me sai do pensamento. E depois? Depois se verá…
Estou sem ideias. Vou ver os emails recebidos neste Natal. Abro o que mais me marcou porque me trouxe à memória pessoas e lugares que me assaltam constantemente o pensamento nos últimos tempos. Releio a mensagem do Pe Adolfo, escrita no seu português característico de Timor, onde relata o verdadeiro espírito de Natal Cristão, vivido a 10 000 quilómetros de distância, em Moçambique. Contava-me ele que iria fazer a celebração da Festa da Família (o Natal Cristão, num país onde proliferam tantas religiões e seitas religiosas) a Tenga (uma comunidade do mato perto da vila da Moamba) à luz das velas, num espírito de união, relembrando as crianças abandonadas ou maltratadas que existem por aí.
Não resisto. Estou nostálgica. Fecho os emails e vou abrir o ficheiro as “Minhas Imagens”. Diante de mim perfilam-se os vários ficheiros, arrumadinhos por datas e locais de Moçambique onde estive nos Verões de 2005 e 2006, como voluntária, junto dos Salesianos D. Bosco. Abro-os um a um, revendo pela enésima vez as fotos que a máquina captou de alguns momentos. Os outros… Bem, os outros começam a aflorar-me uma vez mais à memória. Portanto, por hoje, abandono a minha falhada tarefa de preparar as aulas e vou arrumar umas ideias dispersas que fui deixando no computador, ou escrevendo no meu caderninho. Não são memórias. Ainda não atingi a maturidade para tal feito! Chamar-lhe-ia retalhos de momentos vividos em várias comunidades, uma espécie de crónicas, revelando como cada instante foi intenso ao ponto de me impedir de fazer outras coisas. Vou passá-los para o papel, ainda que considere que não sou muito dada a estas coisas da escrita. Contudo, quando África emerge no meu pensamento, com este nome sucedem-se ideias atrás de ideias que me apetece registar. Sinto uma inquietude inexplicável porque algo remexe no meu cérebro, na minha alma, sei lá, nas minhas entranhas. De uma coisa tenho a certeza, trouxe um pedacinho de África no meu coração e não consigo desligar-me desse facto.

África, África… parece que um conjunto de sinos badala na minha cabeça, trazendo-me à memória este nome. O meu coração aperta-se. Porquê?

Sem comentários:

Enviar um comentário