26 de dezembro de 2006
São três da tarde, sento-me em
frente do computador para começar a preparar as aulas do 2º Período que se
aproxima. Já passou o Natal, vem aí a Passagem de Ano e, logo a seguir,
recomeçam as aulas. Tenho que pensar em preparar as de Português. Mas… porque
será que não me sai nenhuma ideia para introduzir a nova unidade? Será ainda o
cansaço do final do 1º Período? Será que me estou a precipitar, querendo
recomeçar já hoje a trabalhar para a escola? Ainda falta uma semana! Todavia, uma
semana passa depressa! Deixo-me ficar a olhar para o monitor, a ver se surge
alguma ideia interessante. Entretanto, folheio, desinteressadamente, um manual
escolar.
Empurro o computador para o outro lado da mesa. Abro um manual de Português.
Começo a ler os textos. Não me ocorre nada. Olho pela janela, o sol brilha timidamente.
Acho que vou até lá fora, observar as árvores de fruto, os carvalhos, os
pinheiros e os eucaliptos em redor da casa dos meus pais e sorver um pouco do
seu aroma, olhar para o fundo e ver os lameiros, o ribeiro que corre agora
cheio, as pastagens bravias… Normalmente, quando fico sem vontade de estudar ou
de preparar aulas, faço esta espécie de ritual. Saio um pouco e deambulo pelo
pátio da casa ou pelos terrenos em redor dela. O verde das árvores, a calma do
lugar trazem-me serenidade e alguma inspiração para iniciar ou continuar o meu
trabalho. Relembro aquela frase, tantas vezes pronunciada em tom jocoso: “Que
bom que é viver no campo!”
Saio à porta da cozinha. Sinto uma brisa fresca e, como não quero
arriscar outra infecção respiratória, regresso ao seu interior. Cá dentro
sempre está mais quentinho pois o aquecedor torna o ar mais agradável. Reabro
os manuais.
Não. Decididamente hoje não me ocorre nada de interessante para propor
aos meus alunos no início desta nova unidade. Revejo as aulas de Francês. Escolho
um texto que aborda o problema do fast-food
em oposição com o problema da má-nutrição em determinados países. Está
decidido. Reorganizo o dossiê e arrumo-o. É bem mais fácil repensar as aulas de
Francês!
O gato ronrona aos meus pés, move-se e distrai-me porque acabou de se
voltar de patas para o ar para apanhar um pouco mais do calor emanado do
aquecedor. Volto o olhar para ele, amacio-lhe o pêlo. Ele olha-me de soslaio,
como se o estivesse a incomodar e retoma o seu sono por mim interrompido. Penso
na sorte deste bicho que pode aquecer-se e passar os dias sem fazer nada,
porque quando começa a miar sabemos que quer comer e vamos a correr encher-lhe
o prato. Talvez porque seja época de Natal, ou porque esteja particularmente
sensível, vem-me à lembrança que há pessoas por esse mundo fora que nesta
altura passam frio, fome, não têm família, estão abandonadas a si próprias, não
têm sequer um teto, quanto mais um aquecedor.
Volto ao computador. Reabro-o para registar uma ideia que me ocorreu para
introduzir a Literatura de Tradição Oral. Acho que vou começar pela história de O olho do Lobo, de Pennac, quando o
lobo mergulha no olho do menino Afrique e
conhece o seu penoso percurso por África. Introduzo a unidade a contar uma
história, onde se fala de um contador de histórias africano… E porquê africano?
Porque África não me sai do pensamento. E depois? Depois se verá…
Estou sem ideias. Vou ver os emails
recebidos neste Natal. Abro o que mais me marcou porque me trouxe à memória pessoas
e lugares que me assaltam constantemente o pensamento nos últimos tempos.
Releio a mensagem do Pe Adolfo, escrita no seu português característico de
Timor, onde relata o verdadeiro espírito de Natal Cristão, vivido a 10 000 quilómetros
de distância, em
Moçambique. Contava-me ele que iria fazer a celebração da
Festa da Família (o Natal Cristão, num país onde proliferam tantas religiões e
seitas religiosas) a Tenga (uma comunidade do mato perto da vila da Moamba) à
luz das velas, num espírito de união, relembrando as crianças abandonadas ou
maltratadas que existem por aí.
Não resisto. Estou nostálgica. Fecho os emails e vou abrir o ficheiro as “Minhas Imagens”. Diante de mim
perfilam-se os vários ficheiros, arrumadinhos por datas e locais de Moçambique
onde estive nos Verões de 2005 e 2006, como voluntária, junto dos Salesianos D.
Bosco. Abro-os um a um, revendo pela enésima vez as fotos que a máquina captou
de alguns momentos. Os outros… Bem, os outros começam a aflorar-me uma vez mais
à memória. Portanto, por hoje, abandono a minha falhada tarefa de preparar as
aulas e vou arrumar umas ideias dispersas que fui deixando no computador, ou
escrevendo no meu caderninho. Não são memórias. Ainda não atingi a maturidade
para tal feito! Chamar-lhe-ia retalhos de momentos vividos em várias comunidades,
uma espécie de crónicas, revelando como cada instante foi intenso ao ponto de
me impedir de fazer outras coisas. Vou passá-los para o papel, ainda que
considere que não sou muito dada a estas coisas da escrita. Contudo, quando
África emerge no meu pensamento, com este nome sucedem-se ideias atrás de
ideias que me apetece registar. Sinto uma inquietude inexplicável porque algo
remexe no meu cérebro, na minha alma, sei lá, nas minhas entranhas. De uma
coisa tenho a certeza, trouxe um pedacinho de África no meu coração e não
consigo desligar-me desse facto.
África, África… parece que um conjunto de sinos badala na minha cabeça,
trazendo-me à memória este nome. O meu coração aperta-se. Porquê?
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