sexta-feira, 3 de julho de 2015

Julho e Agosto de 2010

Partir? Regressar? O mais importante é estar…
(só um pedacinho dos quatro locais por onde passei - TETE)


Na segunda de manhã cedo, eis-me uma vez mais a caminho do aeroporto. Destino direto - a província de Tete e a escola do Matundo. E uma vez mais o reencontro com uma realidade muito diferente da grande capital. Os embondeiros continuam com a sua imponência, a terra vermelha e seca, onde a vida nem sempre é fácil! Ao sair do avião, o pequenino de 27 lugares e a hélices que demora 2h 45 minutos a sobrevoar baixinho o interior de Moçambique (as montanhas de Chimoio, o rio Limpopo…), uma vez mais o calor, muito calor. Mas desta vez um calor estranho, acompanhado de um vente igualmente quente. Olhando as montanhas ao longe parece que se vislumbrava o aproximar-se do nevoeiro.
Mais uma novidade: já existia passadeira para as malas no aeroporto de Tete e como éramos poucos passageiros, a mala saiu de imediato e também já tinha o meu interlocutor à espera. Foi um instante até chegar a casa, comer um pão com banana – que saudades tinha! – e sair com o diretor da casa em direção à cidade. “Temos uma série de voltas para dar e cada um vai a um lugar para ser mais rápido”, diz-me o chefe, contente com a minha chegada. Aqui não há muito tempo a perder. São cerca de 11 da manhã. Diz-me o diretor que há obras na ponte Samora Machel e que talvez tenhamos algumas dificuldades para chegar à cidade e depois regressar. Não me preocupo muito. Afinal, já estou imbuída do espírito de Moçambique – devagar, devagarinho, parado (a maior parte das vezes, quando se trata de trânsito em alguns locais). Para chegar à cidade, e contrariamente ao previsto, demorámos o tempo mais ou menos previsto, talvez uns 15 minutos a mais. Lá estava o guarda na portagem da ponte que já nos conhece de “ginjeira”, ou melhor os nossos carros, e não temos que parar. Os camiões vindos da Zâmbia e do Malawi têm que ser pesados antes de entrarem na ponte, porque esta está “velhinha” e os pilares já revelam o desgaste de tanto peso e de algumas bombas durante a guerra civil. “Há uma nova ponte em construção”, diz-me o meu chefe, “e são os portugueses que cá estão a orientar as obras!”. Pelas suas palavras deduzo que algumas obras entregues aos chineses não têm corrido lá muito bem e lá continuamos a nossa viagem. Tratamos das nossas tarefas na cidade. Eu fui ao banco (estou cada vez mais importante!), à LAM, levantar uns bilhetes de avião, e ainda ao supermercado.
Encontrámo-nos novamente, por volta das 12h e 30. O ar era cada vez mais abafado. O sol parecia envergonhado, escondido por entre a nuvem de poeira que pairava no ar, mas o vento ficara forte. Estamos em Tete, lembrei a mim mesma e lá partimos rumo ao Matundo.
Pois bem, começou uma aventura e tanto de duas horas e meia num trânsito caótico para atravessar o Zambeze em direção a casa (num percurso que normalmente fazemos em menos de 15 minutos). Antes da entrada na ponte, todas as vias estavam completamente apinhadas de carros, camiões, chapas, motas, bicicletas. Nada avançava, nem gente que quisesse passar a pé! O calor dentro da pic-up era infernal e cá fora também, quando andei um pouco a pé para indagar o que se passava. Parece que tinham fechado a ponte para passar uma comitiva governamental que havia chegado a Tete num outro avião. Ok, pensei, não há de demorar assim tanto tempo! Entretanto o tempo ia passando. Regressei ao carro e o meu chefe já transpirava de nervos! “Então, Pe. Pedro? Nunca o vi assim tão agitado!” “Pois, Maria, mas temos tanto trabalho e estou com fome!” Andei novamente em direção à entrada da ponte para simplesmente olhar o rio e ver se vislumbrava os crocodilos. Entretanto, o trânsito… nada de avançar. Começaram a surgir meninas e senhoras com amendoins e bananas nas caixas ou cestos à cabeça, bem como refrescos que deviam estar mais quentes que chá a ferver. Não tinha nem um metical no bolso! Na entrada da ponte aprecio uma escaramuça entre dois condutores e um polícia, que parecia muito embriagado. Ele tentava dar orientação aos carros que se apinhavam à entrada da ponte, mas estava mais desorientado do que um morcego em pleno dia! Os dois homens ameaçavam-no e ele nem se mexia do lugar. Um deles afasta-o e tenta começar a orientar os outros condutores. Nada. Tudo parado! Quase presenciei uma cena de boxe em plena estrada. E tudo continuava parado. Do lado contrário começavam a ver-se carros a atravessar a ponte. Do lado de Tete, nem um veículo se mexia. Não havia por onde. Se tivesse a máquina, pensei com sarcasmo, isto dava uma bela imagem! E nada de chegarem reforços policiais. Da comitiva presidencial… apenas ouvimos ao longe as sirenes das motos da polícia e vimos pessoas a correr para junto da ponte para ver “a banda passar”. Aqui no interior é assim, na capital já ninguém liga.  Os dois condutores já haviam sido afastados do polícia pelos populares que ali se juntaram e o agente cambaleou afastando-se da confusão, sentando-se debaixo de uma árvore como que a tentar sorver o ar fresco que não existia. Voltei ao carro e contei ao meu chefe o ocorrido. Ele sorriu e disse: “Bem-vinda à confusão, Maria! Hoje vai ser assim. Já passaram duas horas e nós aqui! Avisei lá em casa para não esperarem por nós”. Comemos um pacote de bolachas que entretanto me lembrei ter no saco do supermercado mas a sede apertava. Passou por nós um grupo de polícias que me pareciam tão embriagados como o que estava à entrada da ponte e eis senão quando o trânsito avançou. Foram para aí uns 10 carros! “Ena! Grande avanço!” Não foi fácil gerir aquela confusão do “salve-se quem puder”! Havia carros em cima de passeios, das pedaços de terra que separavam os vários acessos à ponte. Foi de antologia! Avançamos a passo de caracol e quando por fim entrámos na ponte era um civil que comandava o trânsito. Os polícias estavam encostados a um canto, conversando descontraidamente como se nada se passasse e de facto pouco se passava. Passavam cerca de 20 carros de cada vez porque havia muitos camiões do outro lado para cruzar o Zambeze!
E eram 14h e 30 quando chegámos a casa! “Bela receção, Maria!” dizia-me o outro chefe da casa ao ter conhecimento da nossa aventura. “Faz parte”, disse eu, “podia ser diferente, mas não era a mesma coisa! Agora tenho que contar no meu diário. Se fosse sempre igual, não tinha piada!”
E o dia prosseguiu. Quando consegui tomar um banho fresco e beber uma boa dose de chá gelado, senti-me no paraíso! Qual fome, qual calor! Não estava fresca que nem uma alface, isso não era verdade, mas estava bem melhor e à sombra! Quando me deitei em cima da cama, dormi uma boa hora e aí sim, estava bem melhor. Ainda fui a tempo de saudar os alunos que saíam da escola e que me deram as boas vindas, contentes pela minha presença no meio deles.
Fui ver a nova construção de um pavilhão que a Vale do Rio Doce (empresa brasileira que explora o minério em Tete) tinha construído na nossa escola como contrapartida pela formação que dávamos aos homens que trabalhavam para eles. Conversei com um dos responsáveis pela formação e fiquei agradavelmente surpreendida com os avanços verificados em dois anos. A Internet estava bem melhor, os nossos alunos tinham estágios assegurados e muitos dos seus familiares tinham empregos melhor remunerados.
Fez-se noite, sem o pôr-do-sol cor de fogo do costume. O vento estava mais forte e havia poeira por todo o lado. Faltou a energia. Ligámos o gerador para trabalhar um pouco. Uma trovoada imensa abateu-se sobre Tete. Não parecia o Inferno, mas não estava fácil. Tivemos que nos recolher cedo.
Por volta das 4 da manhã ouvi o que me pareciam gotas grossas de chuva no telhado de zinco. “Não acredito! É a primeira vez que chove quando estou aqui em Tete!” O quarto estava insuportavelmente quente e saí para o pátio. Não fui a única! Os meus chefes também acordaram com a chuva e, quais crianças, fomos para o exterior! Então, de chinelos de dedo, de calças de pijama e tee-shirt, fui para a chuva. Vinha-me à memória a música “I’m singing in the rain” de Gene Kelly. Ainda a trauteei, silenciosamente, não fossem pensar que endoidecera de vez com o calor. Era mesmo raro chover em julho e agosto em Tete e por isso a felicidade estampada no rosto dos meus chefes era autêntica e daí também eles, um espanhol e um moçambicano, terem andado à chuva em plena madrugada, no meio do silêncio. A chuva caía em grossas gotas mas caiu durante um bom pedaço, tomámos um bom banho, de chuva! Ainda não tinha voltado a energia, o vento serenara e a poeira acalmara. Às 5 da manhã, começaria um novo dia e estávamos prontos para ele, fresquinhos, de roupa seca, e já sem “mastigar o pó” que incomodava mais do que o calor. O nosso “mata-bicho foi chá frio e pão duro, mas era melhor do que nada. Quando os alunos começaram a chegar à escola, já parara de chover há algum tempo. Sentia-se aquele cheiro a terra quente molhada, de que tanta gente fala ser especial em África. Só mesmo sentido é que se sabe! Não sei descrever, ou não encontro as palavras para o fazer. Notava-se nalguns rostos a preocupação pois as suas palhotas tinham sofrido infiltrações, mas ao mesmo tempo a alegria de saberem que a terra estaria regada, a “nossa” horta poderia dar frutos mais cedo. Entretanto continuava a fazer sentir-se calor para este período do ano, embora tivesse refrescado ligeiramente.
Antes de começarem as aulas, os alunos fizeram uma limpeza das salas, onde o pó abundava, pois algumas janelas ficaram abertas durante a noite. 


Usam serrim molhado no chão de cimento e varrem, limpam as mesas e cadeiras com um pedaço de tecido molhado e estão prontos para começar mais um dia. Assisto a algumas aulas da parte da manhã para verificar a evolução da formação que tinha vindo a ser implementada a nível das didáticas para os professores e da utilização dos manuais (ou as suas fotocópias) ainda em número insuficiente para todos os alunos. Noto diferenças e verifico também que os alunos, quando não têm aulas, vão para a biblioteca estudar. Há um professor responsável por este espaço, ou eu mesma o faço nos tempos livres. Se não houver ninguém, pelo menos no intervalo do “mata-bicho” da manhã há sempre alguém que vai abrir a porta. Estamos a usufruir bem deste espaço, de momento e os livros continuam arrumados por categorias, como os havia deixado em 2007. 
Na Escola Profissional Dom Bosco trabalha-se muito, estuda-se com afinco e com gosto, pois os alunos e os seus formadores acreditam que têm que mudar o rumo das coisas. Estar entre eles é como uma lufada de ar fresco para a minha alma. Perceber como vivem, como sentem cada dia que passa, ainda que por vezes com dificuldades, é cada vez mais enriquecedor para mim. Sempre que podia estava no meio dos alunos, ria com eles, falava com eles ou, simplesmente, escutava. À tarde, depois de terminarem as aulas, depois das 14h e 30, alguns alunos ficavam ainda nas oficinas, outros a estudar (aproveitando a minha presença para tirar dúvidas de Português e de inglês), ou para fazerem atividades com as crianças que nos visitam. Há um pouco de tudo, desde atividades desportivas, à pintura/desenho, à dança, ao teatro ou à simples brincadeira de crianças (jogos que aqui chamamos de tradicionais – do lenço, do elástico mas com pedaços de plástico amarrados, fazendo de elástico), eixo, do gato e do rato… ) enfim, tudo o que os leve a mexer até ao sol se pôr. Só aí desarmam, cansados mas felizes. Aqui as crianças têm tempo para brincar e brincam mesmo, como nós brincávamos, em contacto com a natureza. Depois, regressam a casa pela beira da estrada, ou pelos caminhos do mato, e lá seguem cantando. Como isto me deixa completamente desarmada. Os trabalhos continuam pela noite, relatórios, preparação e material para as aulas e a formação de professores. Num dos dias fomos a Moatize, onde existe uma das nossas missões. Uma visita de cortesia e um refresco depois e já estávamos de regresso à escola. Durante a semana, e em tempo de muito trabalho, as visitas que fazemos entre casas são mesmo “de médico” porque fazer a viagem de noite tem os seus perigos e temos que estar acordados muito cedo.

Não tivemos mais falhas de energia e até fazemos uma sessão de cinema caseiro, na quinta-feira, num canal sul-africano, para descontrair e praticar um pouco mais o nosso inglês. Com direito a gelado e fruta (esta foi uma prática instaurada por mim: cortar fruta aos pedacinhos e colocar uma bola de gelado ao lado), o que é uma raridade por ali e só se faz em momentos especiais. Uma sobremesa diferente, depois de termos comido frango estufado com arroz, o habitual. Ou isto, ou cabrito e “xima”. Também tivemos direito a bolo de coco, na sexta à noite! Sabe bem mimar-nos um bocadinho, depois de uma semana de emoções fortes. 

E uma semana passa a voar! No sábado já estou a voar para Maputo pois no domingo devo viajar para Inharrime (Inhambane). Desta vez não perco o avião, e fazemos escala em Quelimane, apesar de ser de novo o avião a hélices. Portanto a viagem dura cerca de 4h com paragem técnica de 25 minutos. E como o avião sobrevoa o Índico espero vislumbrar as praias de Inhambane. E lá estão elas, que lindas! Por enquanto só as conheço do ar! Não é fácil este caminho de “viandante voluntário”, pois o tempo e o dinheiro não dão para tudo. Não sou turista. Portanto, aprecio o que consigo ver e desfruto sobretudo das aprendizagens que faço por entre estas gentes.




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