sexta-feira, 3 de julho de 2015

Julho e Agosto de 2010

Partir? Regressar? O mais importante é estar…
(só um pedacinho dos quatro locais por onde passei - TETE)


Na segunda de manhã cedo, eis-me uma vez mais a caminho do aeroporto. Destino direto - a província de Tete e a escola do Matundo. E uma vez mais o reencontro com uma realidade muito diferente da grande capital. Os embondeiros continuam com a sua imponência, a terra vermelha e seca, onde a vida nem sempre é fácil! Ao sair do avião, o pequenino de 27 lugares e a hélices que demora 2h 45 minutos a sobrevoar baixinho o interior de Moçambique (as montanhas de Chimoio, o rio Limpopo…), uma vez mais o calor, muito calor. Mas desta vez um calor estranho, acompanhado de um vente igualmente quente. Olhando as montanhas ao longe parece que se vislumbrava o aproximar-se do nevoeiro.
Mais uma novidade: já existia passadeira para as malas no aeroporto de Tete e como éramos poucos passageiros, a mala saiu de imediato e também já tinha o meu interlocutor à espera. Foi um instante até chegar a casa, comer um pão com banana – que saudades tinha! – e sair com o diretor da casa em direção à cidade. “Temos uma série de voltas para dar e cada um vai a um lugar para ser mais rápido”, diz-me o chefe, contente com a minha chegada. Aqui não há muito tempo a perder. São cerca de 11 da manhã. Diz-me o diretor que há obras na ponte Samora Machel e que talvez tenhamos algumas dificuldades para chegar à cidade e depois regressar. Não me preocupo muito. Afinal, já estou imbuída do espírito de Moçambique – devagar, devagarinho, parado (a maior parte das vezes, quando se trata de trânsito em alguns locais). Para chegar à cidade, e contrariamente ao previsto, demorámos o tempo mais ou menos previsto, talvez uns 15 minutos a mais. Lá estava o guarda na portagem da ponte que já nos conhece de “ginjeira”, ou melhor os nossos carros, e não temos que parar. Os camiões vindos da Zâmbia e do Malawi têm que ser pesados antes de entrarem na ponte, porque esta está “velhinha” e os pilares já revelam o desgaste de tanto peso e de algumas bombas durante a guerra civil. “Há uma nova ponte em construção”, diz-me o meu chefe, “e são os portugueses que cá estão a orientar as obras!”. Pelas suas palavras deduzo que algumas obras entregues aos chineses não têm corrido lá muito bem e lá continuamos a nossa viagem. Tratamos das nossas tarefas na cidade. Eu fui ao banco (estou cada vez mais importante!), à LAM, levantar uns bilhetes de avião, e ainda ao supermercado.
Encontrámo-nos novamente, por volta das 12h e 30. O ar era cada vez mais abafado. O sol parecia envergonhado, escondido por entre a nuvem de poeira que pairava no ar, mas o vento ficara forte. Estamos em Tete, lembrei a mim mesma e lá partimos rumo ao Matundo.
Pois bem, começou uma aventura e tanto de duas horas e meia num trânsito caótico para atravessar o Zambeze em direção a casa (num percurso que normalmente fazemos em menos de 15 minutos). Antes da entrada na ponte, todas as vias estavam completamente apinhadas de carros, camiões, chapas, motas, bicicletas. Nada avançava, nem gente que quisesse passar a pé! O calor dentro da pic-up era infernal e cá fora também, quando andei um pouco a pé para indagar o que se passava. Parece que tinham fechado a ponte para passar uma comitiva governamental que havia chegado a Tete num outro avião. Ok, pensei, não há de demorar assim tanto tempo! Entretanto o tempo ia passando. Regressei ao carro e o meu chefe já transpirava de nervos! “Então, Pe. Pedro? Nunca o vi assim tão agitado!” “Pois, Maria, mas temos tanto trabalho e estou com fome!” Andei novamente em direção à entrada da ponte para simplesmente olhar o rio e ver se vislumbrava os crocodilos. Entretanto, o trânsito… nada de avançar. Começaram a surgir meninas e senhoras com amendoins e bananas nas caixas ou cestos à cabeça, bem como refrescos que deviam estar mais quentes que chá a ferver. Não tinha nem um metical no bolso! Na entrada da ponte aprecio uma escaramuça entre dois condutores e um polícia, que parecia muito embriagado. Ele tentava dar orientação aos carros que se apinhavam à entrada da ponte, mas estava mais desorientado do que um morcego em pleno dia! Os dois homens ameaçavam-no e ele nem se mexia do lugar. Um deles afasta-o e tenta começar a orientar os outros condutores. Nada. Tudo parado! Quase presenciei uma cena de boxe em plena estrada. E tudo continuava parado. Do lado contrário começavam a ver-se carros a atravessar a ponte. Do lado de Tete, nem um veículo se mexia. Não havia por onde. Se tivesse a máquina, pensei com sarcasmo, isto dava uma bela imagem! E nada de chegarem reforços policiais. Da comitiva presidencial… apenas ouvimos ao longe as sirenes das motos da polícia e vimos pessoas a correr para junto da ponte para ver “a banda passar”. Aqui no interior é assim, na capital já ninguém liga.  Os dois condutores já haviam sido afastados do polícia pelos populares que ali se juntaram e o agente cambaleou afastando-se da confusão, sentando-se debaixo de uma árvore como que a tentar sorver o ar fresco que não existia. Voltei ao carro e contei ao meu chefe o ocorrido. Ele sorriu e disse: “Bem-vinda à confusão, Maria! Hoje vai ser assim. Já passaram duas horas e nós aqui! Avisei lá em casa para não esperarem por nós”. Comemos um pacote de bolachas que entretanto me lembrei ter no saco do supermercado mas a sede apertava. Passou por nós um grupo de polícias que me pareciam tão embriagados como o que estava à entrada da ponte e eis senão quando o trânsito avançou. Foram para aí uns 10 carros! “Ena! Grande avanço!” Não foi fácil gerir aquela confusão do “salve-se quem puder”! Havia carros em cima de passeios, das pedaços de terra que separavam os vários acessos à ponte. Foi de antologia! Avançamos a passo de caracol e quando por fim entrámos na ponte era um civil que comandava o trânsito. Os polícias estavam encostados a um canto, conversando descontraidamente como se nada se passasse e de facto pouco se passava. Passavam cerca de 20 carros de cada vez porque havia muitos camiões do outro lado para cruzar o Zambeze!
E eram 14h e 30 quando chegámos a casa! “Bela receção, Maria!” dizia-me o outro chefe da casa ao ter conhecimento da nossa aventura. “Faz parte”, disse eu, “podia ser diferente, mas não era a mesma coisa! Agora tenho que contar no meu diário. Se fosse sempre igual, não tinha piada!”
E o dia prosseguiu. Quando consegui tomar um banho fresco e beber uma boa dose de chá gelado, senti-me no paraíso! Qual fome, qual calor! Não estava fresca que nem uma alface, isso não era verdade, mas estava bem melhor e à sombra! Quando me deitei em cima da cama, dormi uma boa hora e aí sim, estava bem melhor. Ainda fui a tempo de saudar os alunos que saíam da escola e que me deram as boas vindas, contentes pela minha presença no meio deles.
Fui ver a nova construção de um pavilhão que a Vale do Rio Doce (empresa brasileira que explora o minério em Tete) tinha construído na nossa escola como contrapartida pela formação que dávamos aos homens que trabalhavam para eles. Conversei com um dos responsáveis pela formação e fiquei agradavelmente surpreendida com os avanços verificados em dois anos. A Internet estava bem melhor, os nossos alunos tinham estágios assegurados e muitos dos seus familiares tinham empregos melhor remunerados.
Fez-se noite, sem o pôr-do-sol cor de fogo do costume. O vento estava mais forte e havia poeira por todo o lado. Faltou a energia. Ligámos o gerador para trabalhar um pouco. Uma trovoada imensa abateu-se sobre Tete. Não parecia o Inferno, mas não estava fácil. Tivemos que nos recolher cedo.
Por volta das 4 da manhã ouvi o que me pareciam gotas grossas de chuva no telhado de zinco. “Não acredito! É a primeira vez que chove quando estou aqui em Tete!” O quarto estava insuportavelmente quente e saí para o pátio. Não fui a única! Os meus chefes também acordaram com a chuva e, quais crianças, fomos para o exterior! Então, de chinelos de dedo, de calças de pijama e tee-shirt, fui para a chuva. Vinha-me à memória a música “I’m singing in the rain” de Gene Kelly. Ainda a trauteei, silenciosamente, não fossem pensar que endoidecera de vez com o calor. Era mesmo raro chover em julho e agosto em Tete e por isso a felicidade estampada no rosto dos meus chefes era autêntica e daí também eles, um espanhol e um moçambicano, terem andado à chuva em plena madrugada, no meio do silêncio. A chuva caía em grossas gotas mas caiu durante um bom pedaço, tomámos um bom banho, de chuva! Ainda não tinha voltado a energia, o vento serenara e a poeira acalmara. Às 5 da manhã, começaria um novo dia e estávamos prontos para ele, fresquinhos, de roupa seca, e já sem “mastigar o pó” que incomodava mais do que o calor. O nosso “mata-bicho foi chá frio e pão duro, mas era melhor do que nada. Quando os alunos começaram a chegar à escola, já parara de chover há algum tempo. Sentia-se aquele cheiro a terra quente molhada, de que tanta gente fala ser especial em África. Só mesmo sentido é que se sabe! Não sei descrever, ou não encontro as palavras para o fazer. Notava-se nalguns rostos a preocupação pois as suas palhotas tinham sofrido infiltrações, mas ao mesmo tempo a alegria de saberem que a terra estaria regada, a “nossa” horta poderia dar frutos mais cedo. Entretanto continuava a fazer sentir-se calor para este período do ano, embora tivesse refrescado ligeiramente.
Antes de começarem as aulas, os alunos fizeram uma limpeza das salas, onde o pó abundava, pois algumas janelas ficaram abertas durante a noite. 


Usam serrim molhado no chão de cimento e varrem, limpam as mesas e cadeiras com um pedaço de tecido molhado e estão prontos para começar mais um dia. Assisto a algumas aulas da parte da manhã para verificar a evolução da formação que tinha vindo a ser implementada a nível das didáticas para os professores e da utilização dos manuais (ou as suas fotocópias) ainda em número insuficiente para todos os alunos. Noto diferenças e verifico também que os alunos, quando não têm aulas, vão para a biblioteca estudar. Há um professor responsável por este espaço, ou eu mesma o faço nos tempos livres. Se não houver ninguém, pelo menos no intervalo do “mata-bicho” da manhã há sempre alguém que vai abrir a porta. Estamos a usufruir bem deste espaço, de momento e os livros continuam arrumados por categorias, como os havia deixado em 2007. 
Na Escola Profissional Dom Bosco trabalha-se muito, estuda-se com afinco e com gosto, pois os alunos e os seus formadores acreditam que têm que mudar o rumo das coisas. Estar entre eles é como uma lufada de ar fresco para a minha alma. Perceber como vivem, como sentem cada dia que passa, ainda que por vezes com dificuldades, é cada vez mais enriquecedor para mim. Sempre que podia estava no meio dos alunos, ria com eles, falava com eles ou, simplesmente, escutava. À tarde, depois de terminarem as aulas, depois das 14h e 30, alguns alunos ficavam ainda nas oficinas, outros a estudar (aproveitando a minha presença para tirar dúvidas de Português e de inglês), ou para fazerem atividades com as crianças que nos visitam. Há um pouco de tudo, desde atividades desportivas, à pintura/desenho, à dança, ao teatro ou à simples brincadeira de crianças (jogos que aqui chamamos de tradicionais – do lenço, do elástico mas com pedaços de plástico amarrados, fazendo de elástico), eixo, do gato e do rato… ) enfim, tudo o que os leve a mexer até ao sol se pôr. Só aí desarmam, cansados mas felizes. Aqui as crianças têm tempo para brincar e brincam mesmo, como nós brincávamos, em contacto com a natureza. Depois, regressam a casa pela beira da estrada, ou pelos caminhos do mato, e lá seguem cantando. Como isto me deixa completamente desarmada. Os trabalhos continuam pela noite, relatórios, preparação e material para as aulas e a formação de professores. Num dos dias fomos a Moatize, onde existe uma das nossas missões. Uma visita de cortesia e um refresco depois e já estávamos de regresso à escola. Durante a semana, e em tempo de muito trabalho, as visitas que fazemos entre casas são mesmo “de médico” porque fazer a viagem de noite tem os seus perigos e temos que estar acordados muito cedo.

Não tivemos mais falhas de energia e até fazemos uma sessão de cinema caseiro, na quinta-feira, num canal sul-africano, para descontrair e praticar um pouco mais o nosso inglês. Com direito a gelado e fruta (esta foi uma prática instaurada por mim: cortar fruta aos pedacinhos e colocar uma bola de gelado ao lado), o que é uma raridade por ali e só se faz em momentos especiais. Uma sobremesa diferente, depois de termos comido frango estufado com arroz, o habitual. Ou isto, ou cabrito e “xima”. Também tivemos direito a bolo de coco, na sexta à noite! Sabe bem mimar-nos um bocadinho, depois de uma semana de emoções fortes. 

E uma semana passa a voar! No sábado já estou a voar para Maputo pois no domingo devo viajar para Inharrime (Inhambane). Desta vez não perco o avião, e fazemos escala em Quelimane, apesar de ser de novo o avião a hélices. Portanto a viagem dura cerca de 4h com paragem técnica de 25 minutos. E como o avião sobrevoa o Índico espero vislumbrar as praias de Inhambane. E lá estão elas, que lindas! Por enquanto só as conheço do ar! Não é fácil este caminho de “viandante voluntário”, pois o tempo e o dinheiro não dão para tudo. Não sou turista. Portanto, aprecio o que consigo ver e desfruto sobretudo das aprendizagens que faço por entre estas gentes.




quarta-feira, 30 de julho de 2014

27 de agosto de 2006 (O regresso a Portugal)

27 de agosto de 2006
De regresso à minha terra, com o cheiro ta terra nas narinas e as lágrimas nos olhos...


Depois de dois dias em Maputo, passados a fazer balanços da nossa atividade, estávamos de novo juntas, as três voluntárias, dentro do grande pássaro de lata que nos traria de volta a Portugal. Mais uma vez, o silêncio apoderou-se de nós. Não falamos antes de o avião levantar, nem depois de este já voar. Cada uma para seu lado ia tentando digerir o que acabara de viver. Quando olhava para uma delas via uma lágrima a correr-lhe na face. Sabia que das três, a Iva era a mais maternal e a mais emotiva, pela forma como se agarrava à capulana que nos haviam oferecido e que quase sempre a acompanhava no saco de mão.

Saímos a horas, pelas 23h 50 e, embora nem todo tenha sido fácil ao nível das emoções, o que tornou o voo noturno em sofrimento, num inexplicável mal-estar, fazendo com que a tripulação tivesse alguma atenção para comigo. Assombrosa sensação a que sentia por estar estranhamente mal disposta. Levaram-me para um local mais tranquilo, longe dos olhares dos outros passageiros. Passou-me tudo pela cabeça. Desde uma simples constipação, a uma indisposição por ter comido mal (ao longo dos últimos dias e no dia da partida), à possibilidade de ter malária! 
Perguntaram se havia um médico a bordo. Apareceram três. Um comprimido, umas palavras de ânimo, acho que um deles, depois de ter falado um pouco comigo, percebeu as razões da minha indisposição, pois referiu que era normal aquele tipo de reação quando se viviam as situações de forma muito intensa como aquela que acabara de lhe relatar. Um mês numa região, outro mês noutra região. Um trabalho muito próximo com as pessoas, uma vida diferente do meu quotidiano na Europa. E tinha razão o médico! Passado um tempo e porque o comprimido fazia efeito e o cansaço se apoderava de mim lá adormeci até me acordarem, pelas 4 da manhã, para tomar o pequeno-almoço. Disse-nos o comandante que aterraríamos em Lisboa uma hora antes do previsto porque a viagem tinha corrido muito bem.
Juntei-me às minhas colegas que tinham sido informadas de que me encontrava a descansar mas que estava bem. No entanto, e por precaução, o médico aconselhara-me a procurar o hospital com a especialidade de doenças tropicais para verificar se tinha ou não malária.
Quando aterrámos e informei a família de que estava em Portugal, a sensação de alívio soou do outro lado do telefone, como se a minha mãe previsse que não estava bem. A receção foi tão calorosa que me esqueci que andava indisposta e que persistia um incómodo, dores de cabeça e no corpo, que na realidade não estava bem fisicamente. Sem nada dizer, aproveitei que já estava ao serviço da escola e dirigi-me ao hospital para fazer o teste da malária. Não é que estivesse totalmente posto de parte, mas acreditava mais que era um acumular de emoções, juntamente com uma certa fraqueza por ter passado algumas carências na alimentação. Claro que na minha região os hospitais não têm a especialidade das doenças tropicais (como em qualquer centro de saúde em Moçambique), pelo que tive que me dirigir a um Hospital Central. Na verdade, o teste comprovou a não existência de malária e as análises feitas revelaram um pequeno distúrbio no fígado, causado pela medicação da profilaxia da malária, bem como cansaço físico. Ao nível das emoções também estava um pouco diferente. Tinham sido dois meses muito intensos!
Depois de passada esta fase menos positiva e de retomado o ritmo normal da vida aqui em Portugal, no coração abria-se a uma nova perspetiva, contavam-se os dias para o regresso. A minha vida é cá. Mas sei que também passa por lá. Sinto o chamamento, a voz de uma terra quente, do seu cheiro indescritível, do seu povo, mas também do meu coração que não consegue desprender-se desta forma de estar na vida.
As minhas férias escolares já não fazem sentido se não voltar, nem que seja apenas por cinco semanas… Por isso, estou determinada a regressar e, se possível a Tete, uma província que me marcou tremendamente. Será pela sua aridez? Será pelo calor da terra e das gentes? Será por ter sentido dificuldades e ter conseguido superá-las? Não sei se sei responder. Apenas sei que quero voltar. E hei de voltar sempre que me chamarem e enquanto tiver força para aguentar um ano letivo e um período de quase dois meses de trabalho intenso e emoções fortes.

Enfim, reflexões feitas, não nego que foram precisos alguns meses para digerir determinados momentos que não me saíam do pensamento. Sem dúvida que quem vai a África e traz um pedacinho deste continente no coração não consegue esquecer facilmente o que lá ficou e o que lá viveu. O desejo de voltar transforma-se numa quase obstinação que não nos larga por tempos… Com a certeza de que ia regressar pela terceira vez, o ânimo foi retomado. As forças concentraram-se novamente num projeto, que pode ser uma pequena gota de água que cai num imenso deserto, mas que juntamente com outras gotas pode ir molhando a terra árida, fazendo com que esta se transforme em terra arável e fértil que vai dar fruto.


Iva, Maria e Sandra (a minha capulana estava guardada)

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Ano de 2006 (2ª parte - Matundo - província de Tete)

1 de agosto de 2006



Pelas sete horas estava a caminho do aeroporto para apanhar um avião para Tete. Mais uma vez, a viagem entre a casa principal e o aeroporto faz-se por uma parte da cidade que, apesar de se ter expandido recentemente, é bastante pobre. O movimento é imenso, com “chapas” a passar a toda a velocidade, mal respeitando outros veículos ou peões (É muito frequente haver acidentes mortais, com estes meios de transporte). Há gente que caminha pela berma da estrada, apressada, para os seus trabalhos, para a escola.
O avião sai em direcção a Tete, uma província do interior centro, que faz fronteira com o Malawi e a Zâmbia, situada a cerca de 1 600 Km da capital. O voo é directo e dura cerca de 1 h e 45 minutos, num “boing”, pois se for no pequeno de hélices demora 2h e 45 minutos.
Vou apreciando a paisagem. Apercebo-me das constantes mudanças de cor, entre o verde das plantações de cana-de-açúcar do vale do rio Limpopo, das montanhas de Chimoio e, depois, a aridez do planalto onde se situa a cidade de Tete, por onde serpenteia o Zambeze, o grande rio moçambicano, tantas vezes amado e outras tantas odiado. Com a aproximação do avião à região, começamos a aperceber-nos da enorme quantidade de árvores gigantescas que abrem seus ramos para o alto como se estivessem constantemente a espreguiçar-se. São os embondeiros que proliferam nesta região e que tenho a oportunidade de ver pela primeira vez, depois de tantos anos de curiosidade sobre estas árvores, cuja referência me tinha ficado da leitura de Le Petit Prince, de Saint-Exupéry. Pela ilustração do livro e pelo nome – “baobab”, pressupunha que se tratava de uma árvore gigantesca, mas ver tantas de uma só vez foi mais gigantesco ainda.
 


Estava satisfeita a minha curiosidade de adolescente, de um dia poder ver de perto e de tocar numa destas árvores. Quando cheguei à escola Dom Bosco do Matundo, que seria a minha segunda casa nesse verão, fui a correr para junto de um dos embondeiros, deixando um pouco espantados os meus cicerones. Apesar de se encontrarem quase todos despidos de folhagem, porque em agosto para eles é época fria, só um dos embondeiros da nossa escola mantém as folhas verdes, por se encontrar num local onde há água. Estas árvores centenárias ou mesmo milenares são completamente ocas no seu interior[1]. Tive a oportunidade de ver algumas carcaças tombadas. Depois de mortas não servem para nada. E ainda bem. Caso contrário já tinham desaparecido, como acontece com as árvores de onde se extrai o pau-preto. Fiz uma experiência para testar a espessura de um dos embondeiros. Coloquei dez jovens de mãos dadas a cercar uma dessas árvores. Riram desta minha atitude, mas que podia fazer? A presença destes gigantes da natureza inebriou-me.
Logo à chegada, e para além desta experiência com os embondeiros, houve outro facto marcante. A temperatura em Tete passava dos 30º C. Ao sair do avião, senti uma aragem quente e seca que bailava pelo meu corpo, parecendo querer entrar e fazer parte da minha existência. Não imaginava a temperatura que os termómetros registavam. Por volta das 13/14 horas estava ainda mais calor. Sentia o corpo pesado e a cabeça a latejar. Abeirou-se de mim um receio tal de não aguentar aquelas temperaturas que resolvi descansar um pouco. Mais tarde, disseram-me que não me preocupasse, que aquelas temperaturas eram normais, embora ainda estivéssemos na época do tempo mais fresco, pois em dezembro/janeiro passava-se e bastante do 40º, mas que, na verdade a temperatura tinha subido nos últimos dias.
Passei alguns dias a habituar-me àquele clima, à nova casa, à nova realidade. Depressa me apercebi que as imagens iniciais, que deliciaram os meus olhos ao chegar a Tete, começavam a tornar-se difíceis de encarar. Sentia-me só, apesar de existir um outro voluntário e de na comunidade me terem acolhido muito bem. A companhia das minhas duas colegas da Moamba fazia-me falta e, já estava habituada a trabalhar sozinha, desde o ano anterior, todavia ali era mais difícil.
Valeu-me o trabalho que me estava destinado e as pessoas maravilhosas que descobri no voluntário espanhol, o Pablo, que ali estava há já um mês e que também se sentia só; do director da casa, homem de poucas mas acertadíssimas palavras, muito pragmático; dos professores com quem trabalhei e dos alunos, seres maravilhosos, ávidos por aprender e muito divertidos. Todos me receberam de braços abertos, inserindo-me naquele meio, naquele imenso espaço que é a Escola Profissional Dom Bosco do Matundo.
As aulas decorriam da parte da manhã, assim como o acompanhamento aos professores, através da assistência às suas aulas, às reflexões e discussões sobre novas práticas pedagógicas. O contacto com os alunos permitiu-me uma nova visão das coisas, nomeadamente do voluntariado, o que já havia acontecido na Moamba, pois no ano anterior não tinha tido essa percepção, em virtude do trabalho que me fora destinado. De tarde, estive a concluir os Manuais de Apoio aos livros de Português, para alunos e professores, bem como uma compilação de Fichas de Trabalho para auxiliar no estudo enquanto, noutro local, a minha colega preparava o manual Pedagógico-Didáctico.


Sala de aula 



Oficinas




Numa das aulas, em que introduzia a temática da Literatura Oral – o Conto – decidi contar aos alunos do 3º Ano, uma história que escutara na Moamba e que se relacionava bastante com a temática a introduzir, mas também com a realidade destes alunos. Contava-lhes então que:
Certo dia, um velho pai de numerosa família, prevendo aproximar-se a hora da sua morte e sabendo que os seus filhos, bastante preguiçosos, não iriam sobreviver durante muito tempo, pediu auxílio a um vizinho e amigo para que tomasse conta de seus filhos.
De facto, o velho homem acabou por morrer e o seu vizinho, cumprindo a promessa feita, chamou os filhos preguiçosos do seu amigo e falou-lhes desta forma:
- Caros amigos. O vosso pai partiu. Agora já não têm quem trabalhe para vos sustentar. Tenho ali uma machamba enorme onde se esconde um tesouro. Contudo, não sei onde está. Por isso, vamos começar a cavar a terra deste lado e vamos procurar o tesouro.
Os filhos do velho não ficaram lá muito satisfeitos mas, na esperança de encontrar o tesouro que os deixasse bem servidos para o resto da vida, puseram pés ao caminho e mãos à enxada e lá foram cavando todos os dias um pedaço de terra. Quando já tinham metade da terra cavada, o vizinho sugeriu que começassem a semeá-la para que pudesse dar frutos e assim teriam alimentos para consumir e até vender, já que tinham a terra em condições. Os outros aceitaram e continuaram a cavar a metade que restava.
As sementes foram germinando e começaram a dar frutos, quando a outra metade da terra já estava também cavada (embora do tesouro não se visse nem fumo!) colheram os frutos da primeira metade, plantaram a segunda e assim começaram a ter comida e dinheiro.
Então, o vizinho disse-lhes: Não encontrámos um tesouro! Conseguimos muito mais do que isso. Criámos o nosso próprio tesouro! É assim que tem de ser: “Va ta sulo va o lolo”- disse-lhes o velho, que quer dizer, “Hão de deixar de ser preguiçosos”!

Mal sabia que os alunos iriam falar desta história aos seus professores, aos seus colegas e ao seu diretor e que esta desse tantos motivos para conversas.
É que os alunos das diferentes turmas tinham uma missão importante a cumprir. Entre eles, deveriam abrir as “covas” para colocar as tabelas de basquetebol do pavilhão gimnodesportivo, entretanto feitas pelos alunos de Serralharia. Ao cavarem a sua parte, os alunos do 3º Ano comentavam entre si: “Os rapazes da história da professora Maria cavavam a terra para encontrar um tesouro. Nós cavamos a terra para enterrar o nosso tesouro!”. “Mas que história é essa?”, perguntava o Diretor. E eles lá contavam a peripécia dos rapazes preguiçosos.
Assimilar a adaptação dos alunos à situação que estavam a viver levou-me um certo tempo, pois estes haviam entendido perfeitamente a mensagem e tinham feito dela um lema, que até serviu de incentivo aos restantes colegas. É que em certos momentos do dia, com o calor que se faz sentir, não é fácil, cavar e partir pedra dura!
Mais uma lição que acabei por aprender com aqueles jovens. E tantas outras se foram desenrolando entretanto. Cada dia, cada aula eram caixinhas de surpresas que os alunos me apresentavam como se de um tesouro se tratasse.
Aos sábados e aos domingos, a presença de imensas crianças no Oratório trazia colorido e uma alegria imensos àquele espaço árido da escola! Desde bem cedo, começavam a chegar, alguns vinham de bem longe! Para ver um filme, ao sábado, ou participar nas diversas actividades, promovidas pelos alunos da escola e animadores do Oratório – jogos, danças, teatro, costura e as histórias, que entretanto lhes comecei a ler ou a contar. No final, reuníamos todos para cantar e dançar. Claro que fui para o meio da roda vezes sem conta e que riam da minha triste figura, pois estou muito longe de dançar como eles!

As crianças nas brincadeiras e a ver um filme 



                                   O campo de futebol da escola do Matundo

E com este cenário, fui esquecendo o imenso calor que entretanto grassava por aquelas paragens, o cansaço que provocava no meu corpo, as saudades das minhas colegas de missão e até do meu país.
Um dos momentos que jamais se apagará da minha memória é o pôr-do-sol por entre os embondeiros. Sem dúvida abismal!
Parece que um imenso mar de fogo inunda o céu e, em pouco mais de cinco minutos, este cenário transforma-se em escuridão. As três cores dominantes são uma bola branca, uma espécie de auréola amarela e o resto tudo laranja. Os embondeiros parecem abrir os ramos nus para abraçar este cenário magnânime, como se esperassem receber o tempo como recompensa. Foram muitos os pores de sol que presenciei e, se dizem que em África este é um dos mais bonitos cenários, é uma verdade incontornável!


As três fases do pôr do sol



Outra das características desta árida região de Moçambique é a presença dos cabritos. Dizem que nesta região “há mais cabritos que homens”. Pareceu-me exagerado, mas o que é um facto é que estes animais andam por todo o lado, sozinhos ou em grandes rebanhos, guardados por crianças e jovens.
            Ver os miúdos chegar do mato montados nos cabritos, depois de um dia sob o calor tórrido, muitas vezes sem terem sequer comido uma única refeição, e parar a conversar com eles é mais uma lição de vida para nós que não temos que nos preocupar com estas coisas.

aldeia típica

Mulheres carregando lenha

            Mas nem tudo são maravilhas neste local. Por ali existem muitas osgas que passeiam, distraída e confortavelmente, pelas paredes e teto do meu quarto. Mas onde elas gostam mesmo de estar é na casa de banho. Deve ser por estar mais fresco. Mas destes bichinhos de cor salmão e meios transparentes não tenho já receios porque se tornaram meus companheiros ao longo do primeiro ano e, como me informaram que eram amigos pois comiam os mosquitos, nunca me atrevi a matar nenhum, apesar do seu aspecto bizarro e de serem um tanto pegajosos. Já as cobras, bichos com quem não gostaria de me ter cruzado, de vez em quando faziam-nos uma visita, bem perto dos nossos quartos. Foram vários os sustos que me pregaram estes seres rastejantes! No entanto, os alunos e os restantes membros da casa pareciam muito familiarizados com elas. Diziam que quando chegava o calor elas costumavam sair das tocas e passear-se pelos terrenos em redor da escola. Então, os jovens agarravam-nas e passeavam-se com elas, penduradas num ramo de árvore, como se transportassem um troféu. Sem dúvida uma forma interessante de lidar com estes bichos, alguns muito venenosos, mas que parecem partilhar o dia-a-dia com estas pessoas sem receios de parte a parte. Quanto a mim, quero muita distância delas, sobretudo que não entrem no meu quarto, onde até cheguei a colocar uma ripa de madeira na porta. Quando saía, ela ficava do lado de fora, quando entrava ela ia para o lado de dentro. "Que patetice!" poder-se-á pensar, mas na verdade não gosto destes bichos. Curiosamente nunca usei rede mosquiteira, embora nos dias de mais calor colocasse repelente e spray no quarto. E nunca tive problemas. Também nunca dei muita importância a alguns alertas que me tinham feito na consulta do viajante. Claro que tomei as precauções quanto a vacinas. Porém não conseguia tomar os comprimidos da prevenção da malária, porque me sentia mal com eles. Nem sempre é fácil mudar-se de hábitos, sobretudo porque quase dois meses, em locais muito diferentes em todos os aspetos, até nos gastronómicos, depois de um ano de trabalho intelectual e stressante, podem levar-nos a enfraquecer. E como o nosso dia é um pouquinho mais longo pois queremos rentabilizar o pouco tempo que temos para muitas tarefas. Portanto, devemos alimentar-nos mais ou menos bem.
            Em Tete, nem sempre foi possível. Por vezes, o almoço era um pão com uma banana. Até ao momento em que pedi para ir à cidade e, com alguma facilidade conseguia fruta para as saladas e legumes para fazer sopa. Aqui, senti as dificuldades de todos e, ao mesmo tempo, a solidariedade. Na escola e com um cacho de bananas na mão, no meio de uma roda feita pelos meninos, via-os aproximarem-se um a um, tirar uma banana e dividir com um colega. Faria assim uma criança do nosso meio? Os nossos alunos comiam um pão e bebiam um chá a meio da manhã, o mata-bicho e só quando chegassem a casa, depois das 15h é que fariam uma refeição, se a tivessem. Vi muitos desmaiarem nas aulas, com fome, obviamente, mas também com malária e outros problemas. Nem sempre é fácil contabilizar as presenças às aulas. Na escola os alunos são constantemente responsabilizados para a necessidade de virem às aulas. Contudo, muitos vêm de longe, a pé, de camião, de bicicleta, de chapa. Muitos estão deslocados das suas regiões pois esta é uma das poucas escolas profissionais no centro de Moçambique e outros ainda são os responsáveis pela numerosa família tendo que resolver todos os assuntos e ainda trabalhar para ajudar.
            Recordando as bicicletas todas em filinha na escola, este é um aspeto interessante neste planalto, atravessado pelo Zambeze. Este meio de transporte é multifuncional. Leva pessoas, carrega com molhos de lenha e, vezes sem conta, são imensas as coisas que vemos serem transportadas numa bicicleta, incluindo animais às costas do próprio ciclista! Há coisas que realmente não são comparáveis e o que para muitos é "uma estranha forma de vida" para mim é uma forma de sobrevivência.

            Aproxima-se o dia de deixar Tete, rumo a Maputo, dois dias antes da partida para Portugal. Uma questão de timing para que não existam problemas no regresso. Estamos quase em setembro e, dia um regressamos à escola. E retomaremos a nossa vida rotineira!
            A viagem é novamente de avião. Poupam-me aos longos dois dias de autocarro (machibombo) com uma paragem noturna para descansar! Fazemos escala na cidade da Beira. Ao aproximar-nos da pista, vemos uma cidade aparentemente bonita, com palmeiras, praia… Mas, ao que parece, ainda há muitos edifícios por reconstruir, um hotel ocupado por centenas de famílias (contaram-me depois) e alguma desorganização. Não me apercebo, pois apenas saímos do avião por 25 minutos. O aeroporto é relativamente moderno e bem organizado. Voltamos a entrar no avião, rumo à capital, onde está mais fresco do que em Tete.







[1] O embondeiro é uma árvore estranha que pode atingir a altura de 20 a 30 metros e medir 10 de diâmetro e quando velha tem um aspeto fossilizado, apesar de continuar viva. Existe em África, na América do Sul e na Austrália. Diz-se que chega a viver milhares de anos, mas isso não pode ser provado, porque não produz anéis de crescimento.
Nos meses de chuva, as árvores armazenam água, no seu grosso tronco de cortiça, resistente ao fogo, para a época seca posterior. As árvores podem armazenar centenas de litros de água que por vezes são aproveitados pelos humanos sedentos.
As fendas abertas naturalmente nos troncos são tão grandes que permitem que caibam lá dentro várias pessoas adultas e como os troncos são ocos podem servir de cisternas colectivas em tempo de seca, de celeiros - e também de prisões e de sepulturas.
O embondeiro faz parte do imaginário colectivo dos africanos e em algumas regiões é considerado um intermediário entre Deus e os homens e venerado como representação de entidade sobrenaturais, sendo amarradas aos seus ramos fitas, adereços e ex-votos.
Uma das lendas africanas conta que o embondeiro, por ter inveja das outras árvores, foi castigado pelos deuses, e posto de cabeça para baixo: a copa foi enterrada e as raízes ficaram para cima. Quando se vê um embondeiro fossilizado, compreendemos com facilidade a origem da lenda... (retirado de um sítio na Internet)

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Ano de 2006 (Moamba)

Janeiro de 2006


Decorria o ano letivo e, nos meus planos para a paragem letiva do verão, estava prevista nova deslocação a Moçambique, desta vez por quase dois meses. Entretanto, do outro lado do hemisfério chegava um email com um pedido muito especial - equipar as camas de um internato em Maputo – na missão de São José de Lhanguene, que na altura albergava 55 rapazes. Urgia esta mudança, depreendi pelas palavras daquela mensagem que me impressionou pela simplicidade e humildade da solicitação. Conhecia alguns daqueles jovens do verão anterior. Tinha estudado com eles, brincado com eles mas, sobretudo, conversado com eles, ouvindo histórias de uma curta mas complicada vida, sem família, sem casa, sem meios para estudar até serem acolhidos naquela que agora era a sua casa e reunidos numa grande família. Via-os limpar e tratar das camaratas, pintar as camas e cuidar do seu pequeno espaço como se fosse um quarto de hotel. Todavia, apercebi-me que os colchões eram pedaços de esponja, os lençóis e as cobertas das camas estavam gastas pelo uso e pelo tempo. Senti-me impotente pois nada podia fazer. Porém uma ideia pairava na minha cabeça. Contar com os meus amigos e a minha família seria uma boa ajuda mas eram precisos cerca de 4 565€ para remodelar as 55 camas, sendo o valor previsto para cada uma delas de cerca de 83 €!
No início, quando me lançaram o desafio, fiquei apreensiva, pois tratava-se de uma quantia considerável e sabia que não podia contar somente com a boa vontade da minha família e amigos. Por outro lado, sentia-me desconfortável quando ia junto das pessoas e lhes falava do meu projeto, temendo que me considerassem demasiado ousada, pedindo para algo que não sabiam se era verdadeiro. E uso a primeira pessoa, pois era a mim que tinham confiado a missão e teria que contar comigo mesma. Não tenho, como muitas figuras públicas, uma posição que me permita levar a cabo uma campanha para angariar fundos. Nem por isso baixei os braços, antes pelo contrário, ergui a cabeça, em busca de uma meta que eu própria estabeleci.
Muita gente oferecia-me o material para enviar para Moçambique. Todavia, conheço os entraves que se colocam ao envio de um contentor - os preços do aluguer e da deslocação, as burocracias na alfândega, acrescidas do preço a pagar, quando se conseguem verbas, pois quando não se conseguem os contentores são simplesmente esvaziados do seu conteúdo e, todo o esforço é em vão! Portanto, o caminho que tomei foi o de angariar dinheiro para poder comprar lá os materiais, até porque se faz circular a moeda no próprio país. Curiosamente, julgo que foi nessa altura que passou a reportagem da jornalista Conceição Queirós, da TVI, acerca dos esforços feitos, aqui em Portugal e depois em Angola, para fazer chegar à Jamba Mineira, tantos donativos angariados e que, infelizmente, nem chegaram todos, nem ao local desejado. Percebi a sua frustração e a dos que contribuíram. Infelizmente é assim, quando não é pior!
É curioso como a força de vontade move montanhas! Elaborei um projeto, com os dados que me tinham enviado, com fotos que possuía do local e escrevi algumas cartas para entregar em empresas e entidades. A mensagem foi passando de boca em boca, os panfletos de mão em mão, da minha escola para o exterior. Até que um jornal da região, tendo conhecimento da iniciativa, decidiu publicar uma entrevista sobre a campanha, o trabalho e as minhas tarefas por terras de missão. Entretanto, e com alguma surpresa, recebi um telefonema na escola. Do outro lado, alguém me colocou uma série de questões sobre o trabalho desenvolvido enquanto voluntária e a campanha em curso para angariar fundos. No final, identificando-se, o meu interlocutor referiu que estava a dar uma entrevista em direto para a Rádio Renascença. Ao que parece a televisão pública teve acesso a este projeto e eis que uma manhã o diretor da escola me anuncia que dali a pouco a RTP visitar-nos-ia para tomar conhecimento do projeto e recolher algumas informações. E assim, a campanha para equipar o internato de São José de Lhanguene foi levada ao país, com testemunhos dos meus alunos e a demonstração das iniciativas levadas a cabo. Depois da captura das imagens e de testemunhos, o jornalista disse que a reportagem iria para o ar talvez no fim de semana no "Jornal da Tarde". Com os meus afazeres e sempre a correr entre escola-casa, as empresas, esqueci a entrevista dada naquela manhã de quarta-feira. No sábado seguinte, estava a caminho de casa quando o telemóvel começou a tocar insistentemente. Eram amigos, familiares e colegas que me diziam: "Então está a passar uma reportagem sobre a tua campanha na TV e tu não dizes nada?" Ao que respondi: "A sério! Que bom! É verdade que me procuraram para captar umas imagens mas não sabia quando ia passar!" Plagiando parte da expressão de Neil Armstrong "Foi um grande passo". Não para mim, mas para os meninos de São José de Lhanguene, em Maputo.
Alguns momentos não foram fáceis, o stresse estava tornar-se cada vez mais forte mas o entusiasmo ia aumentando à medida que os dias passavam. A solidariedade é um valor que felizmente ainda não foi esquecido no nosso país, pelo nosso povo. Ainda que em época de crise, tantas pessoas contribuíram para que os meninos do internato de São José de Lhanguene tivessem "Um doce adormecer e um feliz amanhecer" - o slogan da campanha.
Passados seis meses do início da campanha, ao fazer as contas, verifiquei que o montante angariado quase duplicara o necessário. E, antes da minha partida, uma parte já tinha sido enviada.

8 de julho de 2006

Era chegado o dia de mais uma partida. Se de um lado pesava, novamente, a angústia de me saber fechada dentro de um avião por onze horas, do outro sentia uma leveza incrível pois sabia que, passada essa que para mim é sempre uma “tormenta”, estaria de novo em Moçambique, junto daqueles que deixara um ano antes e de outros que iria conhecer.
Apenas três dias antes soubera quais os destinos que me estavam atribuídos este ano, embora soubesse de antemão as tarefas a desenvolver – a formação de professores e a elaboração de manuais de apoio aos manuais de Português para o Ensino Profissional, bem como o acompanhamento das aulas e das salas de estudo dos alunos das Escolas Profissionais dos Salesianos. Sabia também que, comigo, partiriam mais duas professoras, uma de Português, outra de Matemática, de Lisboa, que conhecera de passagem algum tempo antes, numa formação para voluntários.
O meu destino, bem como o das minhas duas colegas, seria a Escola Profissional da Moamba, a sul do distrito de Maputo, durante três semanas e cerca de quatro semanas na Escola Profissional do Matundo, distrito de Tete (a 1600 Km de Maputo). As minhas companheiras passariam esse tempo na Escola Profissional de Inharrime - Inhambane (a 400 Km de Maputo).
Encontrámo-nos no aeroporto, à hora combinada, juntamente com outro voluntário que partiria por seis meses. Todavia, quis o destino que não partíssemos nesse dia. O voo fora adiado para a manhã seguinte. Relembrei a frase tantas vezes escutada no ano anterior quando algo esperado não acontecia: “Há de vir, há de chegar”. Esta maneira de encarar as realidades, as dificuldades não nos é característica mas faz parte do ser moçambicano e, como “Em Roma sê Romano” nada melhor do que enfrentar as coisas com tranquilidade, ainda antes de partir. Foi assim, num estado de alguma ansiedade, sem perder o ânimo, que passámos esta noite de espera, entre conversas e muitas, muitas perguntas…
Desta vez, e apesar de ser feita durante o dia, a viagem parece ter custado menos. Hoje relembro que poucas foram as vezes que olhei para o relógio. Entre a leitura, as conversas com os meus companheiros de viagem, uma empatia criada com alguns dos passageiros que nos estavam mais próximos, o tempo foi passando, sempre com o espírito já em Moçambique.
À chegada, desta vez já conhecia as contingências que nos esperavam e tudo correu de forma mais agradável. Sabia, também, que alguém conhecido nos aguardaria, sem muito tempo de espera pois as coisas tinham corrido bem. E lá estavam duas pessoas, uma delas que conhecia e a quem soube bem dar um longo abraço, embora passasse da euforia à desilusão quando me disse que partiria dali a pouco para Roma. Mas logo a deceção inicial deu lugar ao entusiasmo que ele próprio demonstrava, relembrando-me que, mesmo longe, estaríamos sempre perto. Enquanto pelo meu rosto rolava uma lágrima, da sua boca ouvi as palavras ternas e consoladoras: “Maria, muitos sucessos para ti. Sei que vais ter um trabalho muito intenso pela frente mas tu sabes ultrapassar qualquer barreira.”
A nossa chegada à vila da Moamba deu-se por volta das 23 h. Pelo caminho, os dois alunos que tinham acompanhado o Director da casa que nos fora receber, para além de falarem pouco, adormeceram porque pelas 6 da manhã do dia seguinte teriam que acordar, juntamente com os colegas, para mais um dia repleto de aulas e das diversas actividades que têm que desenvolver.
A estrada que nos leva até esta vila, situada no interior do distrito de Maputo, a 80 km da cidade é muito boa, se comparada por muitas outras que percorremos mas, uma vez mais, a escuridão total é o seu traço dominante. Lembrei-me que aqui se conduz pela direita e que tem que se prestar muita atenção ao tráfego que vem da frente, às inúmeras pessoas que circulam a pé, de bicicleta, sem contar com os animais que se atravessam na estrada, sem que demos por eles, ou ainda um "chapa" avariado, sem qualquer sinalização. Uma das regras de ouro, nestas circunstâncias, é circular sempre com o pisca direito ligado para que os condutores possam identificar as viaturas que circulam em sentido contrário. E todo o cuidado é pouco! Enfim, tivemos uma viagem tranquila, embora pouco ou nada se visse.
À chegada à casa da comunidade, tivemos uma curta recepção, pois já quase toda a gente repousava para dar continuidade às suas tarefas no dia seguinte. Levaram-nos até à casa dos voluntários, dentro do espaço da escola. A entrada foi surpreendente! Perante os nossos olhos desfilava um cenário quase dantesco! Uma casa de banho rudimentar, alguns quartos com o mínimo indispensável. As minhas duas colegas olhavam tudo com algum pavor. Confesso que também eu tive uma surpresa. É que um odor estranho e muito forte pairava no ar. Este assemelhava-se ao odor de bolor ou de excrementos. O cansaço era tal que acabámos por nos dirigir, cada uma a um quarto, sem desfazer as malas e procurando descansar.

Tnham-nos dito que no dia seguinte não necessitaríamos de nos levantar muito cedo pois deveríamos estar cansadas. Qual não foi o nosso espanto quando, pelas 7 h da manhã ouvimos cantar o hino de Moçambique. Um coro de vozes, essencialmente masculinas mas afinadas entoava, numa melodia própria, palavras que demonstram bem a idade ainda jovem deste hino. De o ouvir todas as semanas ficaram-me bem gravadas na memória as duas últimas estrofes, que marcam não só o orgulho de ser moçambicano mas também a vontade de o ser sem limites, sem barreiras… Enfim, uma vontade que muitas vezes não passa disso mesmo, vontade!
(…)
Flores brotando do chão do teu suor
Pelos montes, pelos rios, pelo mar
Nó juramos por ti, oh Moçambique
Nenhum tirano nos irá escravizar

Moçambique nossa pátria gloriosa
Pedra a pedra construindo um novo dia
Milhões de braços, uma só força
Oh pátria amada, vamos vencer!

Não resistimos e levantámo-nos até porque a fome apertava os nossos estômagos. Para além disso tinha frio e a garganta seca pelo facto de respirar um pó bem fino, de que não dera conta na noite anterior. Pensei que estaria doente pois era pouco comum fazer frio em Moçambique. Só depois me lembrei que a Moamba fica situada no interior…
Ao encontrar as minhas colegas de missão, olhei para as suas caras e deparei-me com duas pessoas assustadas, porque tinham escutado ruídos estranhos, sobre as suas camas, no teto dos quartos. Chamaram-me para matar aranhas e baratas que circulavam por todo o lado. Mas esta parte até se tornou divertida pois acabámos por descobrir que a rede mosquiteira o quarto da Sandra funcionava como uma engrenagem muito curiosa. Momento de “risota” único perante aquele cenário o que até nos fez esquecer os bichos e os barulhos.
Mas os bichos não desarmaram. E… durante várias noites fomos acordadas por guinchos sonantes que pareciam infindáveis, acompanhados de um calcorrear no chão do teto falso, por cima das nossas cabeças, de onde constantemente caía pó e emanava um cheiro bem desagradável. De vez em quando, ouvia-se um estrondo, que mais parecia um disparo de arma pois, no silêncio da noite qualquer ruído pode parecer muito mais amplo. Depois de termos desabafado sobre esta nossa malfadada aventura, riram das nossas caras e com uma calma irrepreensível disseram: “Ah! Isso são os morcegos. Disso é o que mais há aqui na Moamba!”
Nesse dia, ao final da tarde, tivemos uma enorme surpresa ao ver sair, por uma pequena fenda no telhado da casa dos voluntários morcegos… aos milhares! Não é exagero. Eram tantos, tantos que, durante quatro minutos, estivemos a filmar a sua saída, os seus voos rasantes sobre as nossas cabeças para as suas deambulações noturnas, antes de voltarem para nos atormentar o sono. Os estrondos que ouvíamos, frequentemente, e que nos fazia saltar da cama eram as quedas monumentais daqueles bichinhos nocturnos que se deixavam dormir e acabavam estatelados no chão.
Mas as nossas aventuras na Moamba, e que fazem parte da experiência de voluntário, não se ficaram por aqui e vieram em catadupa, logo na primeira semana. Confesso que, no início, me assolou algum receio que as minhas companheiras de missão não aguentassem, pois não estavam habituadas a condições de vida tão duras. Na hora do duche verificámos que apenas caíam umas pingas de água barrenta de um chuveiro, improvisado de forma curiosa, pois estava ligado à corrente para aquecer a água. Para uma das minhas companheiras, de longos cabelos encaracolados, preparada para um duche quente e reconfortante, depois de quase dois dias sem o ter feito, foi mais um choque: “Maria, vem cá ver! Não sai água! E agora, como é que vou lavar o meu cabelo? O corpo ainda posso limpar com toalhetes, mas o cabelo…” Parecia verdadeiramente desesperada e, com a voz embargada, parecia querer resignar-se. Não a deixei continuar a lamuriar-se. Também não nego que fiquei um pouco desiludida, pois um banho era algo de que precisava! Mas nada de baixar os braços. Corri ao exterior e encontrei um balde, enchi-o numa torneira e peguei num pequeno caneco. Pensei “Já tenho uma alternativa, resta saber se a minha companheira não recusa um banho de água fria”. Foi um momento que jamais esqueceremos. Eu e a Sandra, de caneco na mão, íamos deitando água pela cabeça da Iva e lavando os seus longos cabelos. Depois, fomos fazendo rodagem e cada uma fez a sua higiene, entre comentários divertidos para aligeirar o momento de tensão que se tinha instalado inicialmente.

E foi assim durante a primeira semana, até que fosse remendado o cano que transportava a água até à nossa casa de banho e conseguíssemos ver água límpida sair do chuveiro e embora pouca começou a ser um autêntico luxo. Uma verdadeira lição para nós que estamos habituados a abrir a torneira e a ver jorrar água.
E se no início me custou encarar cada dia e também eu habituar-me às dificuldades que iam surgindo, à medida que o tempo passava criava-se uma cumplicidade entre as três. Apoiávamo-nos nos momentos de maior tensão e desalento, ríamos das nossas figuras, partilhávamos os momentos e, todas as noites, depois de nos despedirmos dos alunos e da comunidade, fazíamos um momento de reflexão, um balanço do dia que acabara, as novas aprendizagens e planificávamos o nosso trabalho para o dia seguinte. Foi uma espécie de ritual que serviu para nos conhecermos melhor, para nos tornar cada vez mais unidas. Estava formada a nossa irmandade.

Vista geral da estrada de acesso à vila
Casas da Vila


                                   Avenida do Comércio (ria central da vila da Moamba)



As actividades foram decorrendo, ao longo das semanas, divididas entre as aulas, as horas de estudo em que acompanhávamos os alunos, a formação dos professores e a elaboração dos manuais de apoio ao professor e ao aluno, a vida da comunidade, as saídas para as aldeias do mato, para visitas ou celebrações.
A Escola é de Ensino Profissional, uma das 6 que os salesianos têm em Moçambique com o ensino de Carpintaria, Eletricidade, Serralharia, Agronomia, e os alunos fazem os 2 anos de formação teórico-prática mais a formação em Contexto de trabalho no último ano. É algo parecido com o nosso ensino profissional, embora mais voltado para as profissões necessárias no país. Há outras escolas com Mecânica, Construção Civil, Moda e Confeção. Depois desta formação, os alunos podem continuar os seus estudos mais dois anos e prosseguir para as universidades. São bastantes os casos de sucesso destes alunos, alguns concluíram os estudos na Europa, outros no próprio país e tornaram-se professores destas escolas. Os professores, embora tenham alguma preparação, pois muitos deles foram formados por estas escolas, têm ainda um longo caminho a percorrer no domínio de algumas metodologias e necessitam de mais materiais para solidificarem as suas próprias competências.



                                                   Oficinas da Escola


Pátio



Brincadeiras na escola

Algumas vezes pudemos sentir que estávamos em plena savana africana. A vegetação rasteira, seca, alguns animais percorrendo a imensidão, galinhas do mato ou cobras a atravessar a “estrada” de terra batida e muito pó. Só se circula por estas bandas de jipe e frequentemente é necessário sair para ligar a tracção, que nestes carros é no seu exterior!
Aos domingos, quando íamos a comunidades mais afastadas, bem no meio do nada, era frequente darmos boleia a todo o tipo de gente, desde polícias, a mamãs carregadas de sacos, vindas das compras da vila ou a pessoas que se deslocavam para outras aldeias.
A ida a Tenga (comunidade do mato) foi um momento muito marcante. Para além da viagem pela savana, numa estrada de terra, esburacada como uma rede de pesca, cruzando-nos, de quando em vez, com um camião gigante que quase nos atirava para o meio do mato, sentia os enjoos típicos de uma viagem atribulada, num jipe apinhado de gente. Mas a chegada à comunidade fez esquecer o percurso sinuoso. Trata-se de uma pequena comunidade afastada da vila da Moamba, bem lá no meio da savana. Umas tantas árvores e outras tantas palhotas compõem esta comunidade, sobretudo constituída por crianças e pessoas idosas. Um dos nossos jovens sai do jipe e toca com um ferro noutro ferro pendurado numa árvore. É o anúncio da nossa chegada e o chamamento para a celebração. Ali perto, já se encontram umas quantas mamãs e crianças que nos acolheram com sorrisos bem largos. Eram cerca das 8 da manhã quando chegámos. E dali a pouco já se reunia uma pequena multidão.
A maior surpresa é aquilo a que o padre que nos levou chamou “a catedral de Tenga”. Esta capela, completamente construída em caniço, dos lados e no tecto, com uma iluminação natural fantástica, graças ao material de construção. O altar é uma mesa em madeira, com uma toalha de capulana e os bancos, esses são de uma originalidade ímpar! Pequenos troncos de madeira, apoiados em outros troncos de madeira, num chão de areia limpíssimo. Ao fundo, as esteiras servem de assento às mulheres mais idosas.


Sentámo-nos nos confortáveis bancos de tronco de madeira e ouvimos cânticos, acompanhados do batuque, das palmas e das danças das crianças. A celebração foi feita em língua local – Ronga – e as apresentações finais, as das três voluntárias, bem como as diversas questões que nos colocaram foram sendo traduzidas em Português por um senhor de provecta idade. No final, houve festa e convívio, que infelizmente não pode durar muito pois outra comunidade aguardava a nossa chegada para outra celebração.
Pessene fica a meio do caminho entre a Moamba e Tenga. Ali, numa velha escola, sem portas nem janelas, nos restos das carteiras, onde outrora se sentavam as crianças da escola, sentam-se agora os crentes que vêm à celebração da palavra. Mas, desta vez tive alguma dificuldade em manter-me dentro da improvisada igreja. O cheiro intenso dos excrementos de morcego, acrescido ao facto de já estar um pouco enjoada das constantes inconstâncias do caminho (coisas de ocidental!!!) e de algum calor que se começava a sentir, fez-me passar quase todo o tempo no exterior. Aproveitei para dar uma volta por aquela comunidade. Sem luz, nem água, nem casas de banho, as palhotas são de uma simplicidade e humildade que me fazem pensar no fausto em que vivo o meu quotidiano. Como sou curiosa e algo atrevida, fui metendo conversa com as pessoas que encontrava e que acharam estranha a minha presença ali. Expliquei que era voluntária dos salesianos e acolheram-me como se me conhecessem desde sempre. As palhotas, com apenas duas divisões separadas por uma capulana – o local onde se dorme e aquele onde se reúne a família - têm, no exterior, um espaço que serve de cozinha, onde normalmente se preparam as refeições, com carvão ou uma pequena fogueira. Ao lado a latrina, que serve também de local onde se toma banho, com um balde e um pequeno caneco. Em redor de cada palhota ficam as pequenas machambas, onde se cultivam alguns produtos para consumo caseiro, quando as condições climatéricas são favoráveis.
Nestes locais, a vida segue o ritmo do tempo, do dia-a-dia. E recordo a citação do livro de Mia Couto, O Outro pé da Sereia: “Para nós Africanos o tempo é todo nosso. O branco tem o relógio. Nós temos o Tempo.” O dia começa bem cedo, com as lides domésticas e com as crianças a partir para a escola, tendo por vezes que percorrer mais de sete quilómetros a pé para iniciarem as aulas pelas sete da manhã. Vemo-los com uma sacola às costas onde têm cabimento um livro de textos que já passou por muitas mãos, um caderno, onde bailam as preciosas letras e os números mágicos, uma caneta e um lápis. As mamãs partem para a machamba, para o mato apanhar lenha para fazer carvão ou para o rio, em busca de água ou para lavar as roupas. Os pais ou estão fora, sobretudo na África do Sul, Suazilândia ou Zimbabué nas minas e nas fábricas, ou estão espalhados por Moçambique a trabalhar, em busca de melhores condições para as suas numerosas famílias.

 A caminho da escola
A escola
                                                      A vida no campo
                                                               Carregando água

Tomando conta do maninho!



Quando regressam da escola, as crianças entretêm-se a cuidar dos animais, da machamba, a fazer aqueles penteados exóticos a que todos achamos imensa graça, ou a brincar, com uma bola de trapos, com jogos por si inventados e criados, até que o sol se esconda e a noite se aproxime. Como não há luz eléctrica, depois da refeição, entretanto preparada pelas mamãs ou pelas avós, todos se recolhem, pairando um silêncio um tanto assustador, parecendo que todo aquele fervilhar de vida desapareceu da face da terra. Este silêncio é apenas interrompido pelos sons da noite, emitidos pelos animais que a povoam e que rondam as aldeias.
Por vezes, a comunidade reúne-se, em redor de uma fogueira, para decidir os destinos da aldeia, resolver problemas da comunidade, fazer celebrações, ou partilhar vivências e contar histórias, fazendo-nos sonhar com uma África idílica, onde o soba da aldeia conta histórias fantásticas, que povoam o nosso imaginário. Mas a mística e o idílico dão lugar sobretudo a preocupações dos mais velhos sobre os assuntos da aldeia, a distribuição de comida aos mais carenciados, a ajuda na construção de habitações, o acolhimento de uma viúva e dos seus filhos, as tarefas a distribuir pelos diversos membros. É, de facto, curioso, como numa região tão carenciada se consegue ser tão solidário, tão unido e se encontra sempre uma saída para os problemas. Contudo, infelizmente, não se conseguem resolver todas as situações.
Outro momento marcante vivido na Moamba, foi no domingo em que fizemos um passeio até ao rio, com os alunos internos da nossa escola. São cerca de seis quilómetros de estrada, que percorremos a pé, entre cantos, jogos e conversas. Connosco levávamos um lanche, que foi passando de mão em mão para que ninguém fosse sobrecarregado.
A caminho do rio




A chegada ao rio foi um momento de delírio para os jovens que, apesar de terem ido todo o caminho a dizer que este estava pejado de crocodilos, se lançaram sobre as águas como se há muito não tivessem usufruído desta liberdade. Depois, entretiveram-se com inúmeros jogos, como futebol, o jogo da corda, vários jogos de grupo, em que participámos também. O facto de me terem dito que havia crocodilos no rio manteve-me à distância das águas, apetecíveis é certo, mas temíveis. Ainda hoje duvido da veracidade da existência desses animais naquele rio, o certo é que não arrisquei. E ouviram-se algumas histórias de pessoas, sobretudo crianças, atacadas por crocodilos, perto do rio e na machamba que pertence à nossa escola. Por isso, antes prevenir…
O regresso no camião

Depois do lanche aproximava-se a hora de partir. Tinha chegado o vovô Oliveira com o camião para nos levar de volta à escola. O sol ia declinando no horizonte e, quando estávamos todos em cima do camião, foi uma explosão de alegria aquilo que presenciámos. Um grupo de jovens, cheios de energia, mesmo depois dos mergulhos no rio, das corridas e dos jogos, cantava e pulava em cima do camião. Por entre cantos em Português e Ronga, gritos somo “Força, Oliveira, quem paga sou eu”, incentivando o condutor do camião a acelerar, houve um momento de silêncio profundo e intrigante. De repente, alguém gritou: “Atenção! Cemitério!”. Toda a gente se calou e, enquanto passávamos pelo local de repouso dos seus mortos, que tanto respeitam, não se ouvia senão o ruído do motor do camião. Entreolhámo-nos, as três voluntárias, pois aquele sinal de respeito pelos seus antepassados era algo que nos marcava profundamente. Mais uma lição, mais uma aprendizagem, sobre um povo com uma cultura própria e crenças que respeito verdadeiramente. Depois de termos passado o cemitério e deste momento, rebentou de novo a alegria, continuaram-se os cantos até à chegada à escola. Entretanto já havia anoitecido. Os jovens despediram-se de nós e foram estudar um pouco enquanto aguardaram a hora do jantar. Que dia! Quantas emoções! Quantas lições de vida!
Um dia falava aos então meus alunos da Escola Profissional da Moamba sobre o meu dia-a-dia em Portugal, sobre os meus alunos e a minha escola, porque me questionavam constantemente sobre isso, mas também sobre a Europa, a minha região, a cultura, os hábitos… É normal. Têm curiosidade de saber como vivem outras pessoas, iguais a eles mas também muito diferentes.
Depois de lhes ter dito que, por vezes, sentia uma desmotivação crescente dos meus alunos pela escola, que estes tinham outros interesses, outros divertimentos, outras motivações e que, frequentemente, a escola era vista como uma prisão, uma obrigação, um lugar onde estavam porque os pais, ou a própria sociedade assim o impunham. Enquanto os outros continuavam a questionar-me, entusiasticamente, reparei que um dos alunos ficou calado e um tanto apreensivo. Vi-o baixar a cabeça, pensativo. Ao contrário do que era habitual, saiu da sala sem se despedir, o que normalmente fazia com entusiasmo e um sorriso contagiante que me deixavam a pensar: “ganhei o dia”. Julguei que o tinha magoado por falar em coisas que muito dificilmente estes jovens possam vir a ter, luxos que para nós são banalidades. Muito honestamente senti-me mal e decidi que talvez fosse melhor não voltar a tocar em assuntos que pudessem melindrar aqueles jovens que não têm quase nada.


Passados uns dias, o Armando, o tal aluno, entregou-me dois textos e disse-me: “Professora Maria, gostava que quando chegasse a Portugal lesse isto aos seus alunos.”
O texto relata o seu dia-a-dia, o seu esforço para ser bom aluno e atingir os seus objectivos. O poema é um apelo urgente à necessidade de estudar. Reproduzo-os tal como os recebi, com a autenticidade do seu autor, com a originalidade de um jovem que ser engenheiro civil e que tem potencial para isso!
“Caros amigos:
Começo por dizer que a boa vida não é como uma doença, que vem sem que a esperemos e que a sabedoria preserva a vida de quem a possui. Agora escutem um pouco de nós.
Nós ganhamos o nosso curso a um grande custo. Por dia vou à escola três vezes. Primeiro das 7h até às 12h 30. Depois vou para casa, carto água a uma distância de 500 m e volto. Lavo a louça, limpo o chão e cozinho. Quando não tenho que cozinhar, como soja ou farinha de mandioca. Volto para a escola às 14h 30. As aulas terminam às 16h 05. Volto novamente a casa e cozinho só arroz pelo motivo de o tempo ser curto. Regresso à escola pelas 17h 30, onde fico até às 19h e 25 a estudar e a tirar dúvidas com os professores e os meus colegas. No ano passado fui o melhor aluno, no aproveitamento e no comportamento, da Escola Profissional da Moamba.
Por vezes, aos fins de semana vou a Maputo – a 80 Km daqui – visitar a família e buscar comida. Como só encontro 25Kg de arroz, só posso trazer 5, um pouco de óleo, umas cebolas e uns caldos. Muitas vezes, quando chega a meio da semana já não tenho que comer e vou a casa dos amigos. Outras vezes, são eles que vêm a minha casa. Temos que pagar a renda e a luz, e temos sorte por ter electricidade para poder estudar à noite.
Vocês deveriam sentir-se orgulhosos por não ter que estar longe da família, ter televisão, ter livros e cadernos para estudar, não ter que pagar renda de casa, comparar comida… Por favor, valorizem os vossos professores, a vossa escola e a vossa vida. Se têm mais possibilidades do que nós, então esforcem-se e apliquem-se sempre para alcançarem os vossos objectivos e os vossos sonhos. Nunca procurem soluções mágicas para os vossos problemas. Elas não existem no mundo real em que vivemos. Não se esqueçam que o sucesso depende do trabalho.
Felicidades e força!”

URGENTE
É urgente estudar.
É urgente ser uma pessoa de qualidade.
É urgente sentar-se na carteira.
É mesmo urgente levar horas atento na sala de aula.
É urgente levar a sério o que o professor diz.
É urgente e importante parar de brincar e ficar sério.
É urgente matutar a cabeça por um certo objectivo.
É urgente ver, julgar e depois agir.
É urgente ser-se diferente.
É urgente descobrir novos horizontes.
É urgente deixar a preguiça
E preparar-se arduamente para o futuro.
É urgente…
Jovens do amanhã!

Armando Sorte (26/07/06)

Não resisti em fazer a experiência, logo no início do ano lectivo, e ler estes textos aos meus alunos, nomeadamente aos que ainda não conhecia e que me pareciam bastante desmotivados. Acho que alguns “sofreram um pequeno abanão.” Outros, facilmente esqueceram e passaram ao lado destas mensagens sinceras e sentidas. É assim mesmo. A vida continua, aqui na minha realidade, ainda que me seja difícil desprender-me de determinados momentos vividos e do tanto que acabei por aprender com aquelas gentes.
No final de quase um mês a lidar diariamente com muitos alunos, pois íamos rodando quer nas aulas, quer na sala de estudo, muitas são as experiências partilhadas, as amizades travadas. Por isso, as cartas e mensagens de muitos dos alunos que, quer de forma pessoal se dirigiram a mim, quer de forma colectiva, deixaram-me sem palavras.
Uma das cartas de despedida é do Armando Sorte, 17 anos, aluno do 2º ano do Curso Profissional de Electricidade, evocando aquilo que significou a nossa presença na vida da escola e dos alunos:
“Doce Professora:
A vida perderia o seu brilho se por acaso não existissem pessoas simples, altruístas, humildes, simpáticas e generosas como vocês. Eu juro que perpetuamente me lembrarei de si. Tem de partir. Custa-me a acreditar. Mas é assim… O que tem o seu princípio tem o seu fim.
Kanimambo, muito obrigado, e volte sempre porque este Moçambique, eu sinto que também é seu.
Ni mbouguile.
Armando Sorte”

De um outro Armando, o Marcelo, também aluno do 2º ano, um dos melhores alunos da Escola Profissional da Moamba, a carta que me deixou não poderia ser esquecida. As palavras destes jovens espelham o seu estado de alma e reflectiram-se no meu estado de alma quando a li e reli, no avião para Tete, no avião para Portugal, em casa, tantas vezes desejando apanhar o avião de regresso a Moçambique e poder abraçá-los de novo, estar e trabalhar com eles. É tão diferente dar aulas a estes alunos!

“Para ti, professora Maria:
Com todo o respeito que tenho por ti venho por este meio agradecer imensamente por tudo aquilo que fizeste por mim e pelos meus colegas. E para dizer muito obrigado por tudo o que contigo aprendi, pela sabedoria, pela ciência, pela inteligência, enfim pela companhia.
Deixaste a tua família, amigos e vieste cá, em Moçambique, pelo amor que tens com os outros.
Aposto que um dia poderei esquecer muitas coisas mas jamais esquecerei que, para além de seres professora de Português, és um ser humano cheio de carinho que sabe dar aos outros. A tua presença foi importante. Ao teu lado senti-me diferente.
Se eu fosse um mágico inventaria imensas palavras para exprimir tudo aquilo que fizeste por mim, por nós, alunos da Escola Profissional da Moamba. Mas não sou e por isso resta-me dizer, com todo o carinho: Boa Viagem e volta sempre porque amei a tua presença no meio de nós.”
Armando Marcelo [1]

Sem dúvida mensagens que me deixam sem palavras. São palavras simples mas sentidas e com sentido, que merecem a devida reflexão. Estes jovens não estão nesta escola por acaso. Estão porque merecem e querem um futuro melhor, porque procuram o melhor para o seu país, porque querem lutar por ele, para que não caia no esquecimento daqueles que detêm o poder. E têm consciência de que com uma educação melhor conseguirão chegar mais além. O facto de frequentarem cursos profissionais, torna-os aptos para uma profissão, mesmo que alguns deles venham a optar, mais tarde, por cursos universitários, quando reunirem condições monetárias para o fazer.
Sinto uma certa frustração quando, ao ler estas mensagens aos meus alunos, alguns as ignorem, porque não vivem aquelas realidades, sempre tiveram tudo de “mão beijada” e portanto, esquecem o que ouviram e seguem despreocupados, pois alguém lhes há de indicar um caminho, uma saída. É assim aqui. Já nos habituámos! 
É com tristeza na alma que me despeço destas gentes e das minhas duas companheiras que partiriam dali a dias para outro local, a 400 Km de Maputo. Foi num domingo, a meio da tarde, no final de julho. Terminara a missa missão naquela escola. Esperavam-me em outro lugar para mais três semanas de trabalho com professores, alunos e computadores.
A separação das colegas de missão foi difícil, pois entre nós tinha-se criado um clima de companheirismo e cumplicidade. Já nem era preciso pronunciar muitas palavras, o que para mim era sempre complicado!, para que se instalasse o diálogo. Era uma espécie de irmandade, com códigos de comunicação muito próprios, que ficarão sempre registados nas nossas mentes.
Tinha que ser. Outro destino nos aguardava. Também lá precisavam de nós. Não podíamos ser egoístas ao ponto de querermos ficar sempre juntas e no mesmo local.
Nesse domingo, ao fim da tarde, visitei o Lar de S. José de Lhanguene, para onde tinha ido a ajuda monetária da campanha em Portugal. Queria ver com os meus olhos para comprovar que tinha valido a pena. Para minha surpresa, todas as camas estavam já equipadas. Colchões condignos, lençóis, almofadas, um cobertor e uma coberta, aos quadradinhos, colorida. Como estavam felizes os meninos! Como fiquei contente com a sua felicidade! E em tom de brincadeira diziam alguns: "Nós agora nem fazemos cena para ir para a cama pois sabemos que vamos descansar bem!" Valeu a pena? E plagio Pessoa pois foi grande a minha alegria: "Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena". E tirei fotos para mostrar cá que tinha mesmo valido a pena. Tivemos sorte, pois o dinheiro ainda não havia chegado todo. Mas, do outro lado também queriam provar que confiavam em nós e agradeciam o nosso gesto. Os meninos cantaram, dançaram, abraçaram-me e, sobretudo, sorriram. E aqueles sorrisos encheram o meu coração e bailava este pensamento na minha cabeça: "Como se pode ser feliz com tão pouco!" Aquilo que se conseguiu foi fruto de uma grade união, solidariedade, força de vontade e muito carinho de todos quantos contribuíra, em Portugal. Bem-haja a todos.




[1] Este jovem faleceu em 2009, na África do Sul, vítima de racismo!!! Lamentavelmente muitos moçambicanos são vitimados neste país vizinho.