Julho e Agosto de 2010
Partir? Regressar? O mais importante é
estar…
(só um pedacinho dos quatro locais por onde passei - TETE)
Na segunda de manhã cedo, eis-me uma vez mais a caminho do aeroporto.
Destino direto - a província de Tete e a escola do Matundo. E uma vez mais o
reencontro com uma realidade muito diferente da grande capital. Os embondeiros
continuam com a sua imponência, a terra vermelha e seca, onde a vida nem sempre
é fácil! Ao sair do avião, o pequenino de 27 lugares e a hélices que demora 2h
45 minutos a sobrevoar baixinho o interior de Moçambique (as montanhas de
Chimoio, o rio Limpopo…), uma vez mais o calor, muito calor. Mas desta vez um
calor estranho, acompanhado de um vente igualmente quente. Olhando as montanhas
ao longe parece que se vislumbrava o aproximar-se do nevoeiro.
Mais uma novidade: já existia passadeira para as malas no aeroporto de
Tete e como éramos poucos passageiros, a mala saiu de imediato e também já
tinha o meu interlocutor à espera. Foi um instante até chegar a casa, comer um
pão com banana – que saudades tinha! – e sair com o diretor da casa em direção
à cidade. “Temos uma série de voltas para dar e cada um vai a um lugar para ser
mais rápido”, diz-me o chefe, contente com a minha chegada. Aqui não há muito
tempo a perder. São cerca de 11 da manhã. Diz-me o diretor que há obras na
ponte Samora Machel e que talvez tenhamos algumas dificuldades para chegar à cidade
e depois regressar. Não me preocupo muito. Afinal, já estou imbuída do espírito
de Moçambique – devagar, devagarinho, parado (a maior parte das vezes, quando
se trata de trânsito em alguns locais). Para chegar à cidade, e contrariamente
ao previsto, demorámos o tempo mais ou menos previsto, talvez uns 15 minutos a
mais. Lá estava o guarda na portagem da ponte que já nos conhece de “ginjeira”,
ou melhor os nossos carros, e não temos que parar. Os camiões vindos da Zâmbia
e do Malawi têm que ser pesados antes de entrarem na ponte, porque esta está “velhinha”
e os pilares já revelam o desgaste de tanto peso e de algumas bombas durante a
guerra civil. “Há uma nova ponte em construção”, diz-me o meu chefe, “e são os
portugueses que cá estão a orientar as obras!”. Pelas suas palavras deduzo que
algumas obras entregues aos chineses não têm corrido lá muito bem e lá
continuamos a nossa viagem. Tratamos das nossas tarefas na cidade. Eu fui ao
banco (estou cada vez mais importante!), à LAM, levantar uns bilhetes de avião,
e ainda ao supermercado.
Encontrámo-nos novamente, por volta das 12h e 30. O ar era cada vez mais
abafado. O sol parecia envergonhado, escondido por entre a nuvem de poeira que
pairava no ar, mas o vento ficara forte. Estamos em Tete, lembrei a mim mesma e
lá partimos rumo ao Matundo.
Pois bem, começou uma aventura e tanto de duas horas e meia num trânsito
caótico para atravessar o Zambeze em direção a casa (num percurso que
normalmente fazemos em menos de 15 minutos). Antes da entrada na ponte, todas
as vias estavam completamente apinhadas de carros, camiões, chapas, motas,
bicicletas. Nada avançava, nem gente que quisesse passar a pé! O calor dentro
da pic-up era infernal e cá fora também, quando andei um pouco a pé para
indagar o que se passava. Parece que tinham fechado a ponte para passar uma
comitiva governamental que havia chegado a Tete num outro avião. Ok, pensei,
não há de demorar assim tanto tempo! Entretanto o tempo ia passando. Regressei
ao carro e o meu chefe já transpirava de nervos! “Então, Pe. Pedro? Nunca o vi
assim tão agitado!” “Pois, Maria, mas temos tanto trabalho e estou com fome!”
Andei novamente em direção à entrada da ponte para simplesmente olhar o rio e
ver se vislumbrava os crocodilos. Entretanto, o trânsito… nada de avançar.
Começaram a surgir meninas e senhoras com amendoins e bananas nas caixas ou
cestos à cabeça, bem como refrescos que deviam estar mais quentes que chá a
ferver. Não tinha nem um metical no bolso! Na entrada da ponte aprecio uma
escaramuça entre dois condutores e um polícia, que parecia muito embriagado.
Ele tentava dar orientação aos carros que se apinhavam à entrada da ponte, mas
estava mais desorientado do que um morcego em pleno dia! Os dois homens
ameaçavam-no e ele nem se mexia do lugar. Um deles afasta-o e tenta começar a
orientar os outros condutores. Nada. Tudo parado! Quase presenciei uma cena de
boxe em plena estrada. E tudo continuava parado. Do lado contrário começavam a
ver-se carros a atravessar a ponte. Do lado de Tete, nem um veículo se mexia.
Não havia por onde. Se tivesse a máquina, pensei com sarcasmo, isto dava uma
bela imagem! E nada de chegarem reforços policiais. Da comitiva presidencial…
apenas ouvimos ao longe as sirenes das motos da polícia e vimos pessoas a
correr para junto da ponte para ver “a banda passar”. Aqui no interior é assim,
na capital já ninguém liga. Os dois
condutores já haviam sido afastados do polícia pelos populares que ali se
juntaram e o agente cambaleou afastando-se da confusão, sentando-se debaixo de
uma árvore como que a tentar sorver o ar fresco que não existia. Voltei ao
carro e contei ao meu chefe o ocorrido. Ele sorriu e disse: “Bem-vinda à
confusão, Maria! Hoje vai ser assim. Já passaram duas horas e nós aqui! Avisei
lá em casa para não esperarem por nós”. Comemos um pacote de bolachas que
entretanto me lembrei ter no saco do supermercado mas a sede apertava. Passou
por nós um grupo de polícias que me pareciam tão embriagados como o que estava
à entrada da ponte e eis senão quando o trânsito avançou. Foram para aí uns 10
carros! “Ena! Grande avanço!” Não foi fácil gerir aquela confusão do “salve-se
quem puder”! Havia carros em cima de passeios, das pedaços de terra que
separavam os vários acessos à ponte. Foi de antologia! Avançamos a passo de
caracol e quando por fim entrámos na ponte era um civil que comandava o
trânsito. Os polícias estavam encostados a um canto, conversando
descontraidamente como se nada se passasse e de facto pouco se passava.
Passavam cerca de 20 carros de cada vez porque havia muitos camiões do outro
lado para cruzar o Zambeze!
E eram 14h e 30 quando chegámos a casa! “Bela receção, Maria!” dizia-me o
outro chefe da casa ao ter conhecimento da nossa aventura. “Faz parte”, disse
eu, “podia ser diferente, mas não era a mesma coisa! Agora tenho que contar no
meu diário. Se fosse sempre igual, não tinha piada!”
E o dia prosseguiu. Quando consegui tomar um banho fresco e beber uma boa
dose de chá gelado, senti-me no paraíso! Qual fome, qual calor! Não estava
fresca que nem uma alface, isso não era verdade, mas estava bem melhor e à
sombra! Quando me deitei em cima da cama, dormi uma boa hora e aí sim, estava
bem melhor. Ainda fui a tempo de saudar os alunos que saíam da escola e que me
deram as boas vindas, contentes pela minha presença no meio deles.
Fui ver a nova construção de um pavilhão que a Vale do Rio Doce (empresa
brasileira que explora o minério em Tete) tinha construído na nossa escola como
contrapartida pela formação que dávamos aos homens que trabalhavam para eles.
Conversei com um dos responsáveis pela formação e fiquei agradavelmente
surpreendida com os avanços verificados em dois anos. A Internet estava bem
melhor, os nossos alunos tinham estágios assegurados e muitos dos seus
familiares tinham empregos melhor remunerados.
Fez-se noite, sem o pôr-do-sol cor de fogo do costume. O vento estava
mais forte e havia poeira por todo o lado. Faltou a energia. Ligámos o gerador
para trabalhar um pouco. Uma trovoada imensa abateu-se sobre Tete. Não parecia
o Inferno, mas não estava fácil. Tivemos que nos recolher cedo.
Por volta das 4 da manhã ouvi o que me pareciam gotas grossas de chuva no
telhado de zinco. “Não acredito! É a primeira vez que chove quando estou aqui
em Tete!” O quarto estava insuportavelmente quente e saí para o pátio. Não fui
a única! Os meus chefes também acordaram com a chuva e, quais crianças, fomos
para o exterior! Então, de chinelos de dedo, de calças de pijama e tee-shirt,
fui para a chuva. Vinha-me à memória a música “I’m singing in the rain” de Gene
Kelly. Ainda a trauteei, silenciosamente, não fossem pensar que endoidecera de
vez com o calor. Era mesmo raro chover em julho e agosto em Tete e por isso a
felicidade estampada no rosto dos meus chefes era autêntica e daí também eles,
um espanhol e um moçambicano, terem andado à chuva em plena madrugada, no meio
do silêncio. A chuva caía em grossas gotas mas caiu durante um bom pedaço,
tomámos um bom banho, de chuva! Ainda não tinha voltado a energia, o vento
serenara e a poeira acalmara. Às 5 da manhã, começaria um novo dia e estávamos
prontos para ele, fresquinhos, de roupa seca, e já sem “mastigar o pó” que
incomodava mais do que o calor. O nosso “mata-bicho foi chá frio e pão duro,
mas era melhor do que nada. Quando os alunos começaram a chegar à escola, já
parara de chover há algum tempo. Sentia-se aquele cheiro a terra quente
molhada, de que tanta gente fala ser especial em África. Só mesmo sentido é que
se sabe! Não sei descrever, ou não encontro as palavras para o fazer. Notava-se
nalguns rostos a preocupação pois as suas palhotas tinham sofrido infiltrações,
mas ao mesmo tempo a alegria de saberem que a terra estaria regada, a “nossa”
horta poderia dar frutos mais cedo. Entretanto continuava a fazer sentir-se
calor para este período do ano, embora tivesse refrescado ligeiramente.
Antes de começarem as aulas, os alunos fizeram uma limpeza das salas,
onde o pó abundava, pois algumas janelas ficaram abertas durante a noite.
Usam
serrim molhado no chão de cimento e varrem, limpam as mesas e cadeiras com um
pedaço de tecido molhado e estão prontos para começar mais um dia. Assisto a
algumas aulas da parte da manhã para verificar a evolução da formação que tinha
vindo a ser implementada a nível das didáticas para os professores e da
utilização dos manuais (ou as suas fotocópias) ainda em número insuficiente
para todos os alunos. Noto diferenças e verifico também que os alunos, quando
não têm aulas, vão para a biblioteca estudar. Há um professor responsável por
este espaço, ou eu mesma o faço nos tempos livres. Se não houver ninguém, pelo
menos no intervalo do “mata-bicho” da manhã há sempre alguém que vai abrir a
porta. Estamos a usufruir bem deste espaço, de momento e os livros continuam
arrumados por categorias, como os havia deixado em 2007.
Na Escola Profissional Dom Bosco trabalha-se muito, estuda-se com afinco
e com gosto, pois os alunos e os seus formadores acreditam que têm que mudar o
rumo das coisas. Estar entre eles é como uma lufada de ar fresco para a minha
alma. Perceber como vivem, como sentem cada dia que passa, ainda que por vezes
com dificuldades, é cada vez mais enriquecedor para mim. Sempre que podia
estava no meio dos alunos, ria com eles, falava com eles ou, simplesmente,
escutava. À tarde, depois de terminarem as aulas, depois das 14h e 30, alguns
alunos ficavam ainda nas oficinas, outros a estudar (aproveitando a minha
presença para tirar dúvidas de Português e de inglês), ou para fazerem
atividades com as crianças que nos visitam. Há um pouco de tudo, desde
atividades desportivas, à pintura/desenho, à dança, ao teatro ou à simples
brincadeira de crianças (jogos que aqui chamamos de tradicionais – do lenço, do
elástico mas com pedaços de plástico amarrados, fazendo de elástico), eixo, do
gato e do rato… ) enfim, tudo o que os leve a mexer até ao sol se pôr. Só aí
desarmam, cansados mas felizes. Aqui as crianças têm tempo para brincar e
brincam mesmo, como nós brincávamos, em contacto com a natureza. Depois,
regressam a casa pela beira da estrada, ou pelos caminhos do mato, e lá seguem
cantando. Como isto me deixa completamente desarmada. Os trabalhos continuam
pela noite, relatórios, preparação e material para as aulas e a formação de
professores. Num dos dias fomos a Moatize, onde existe uma das nossas missões.
Uma visita de cortesia e um refresco depois e já estávamos de regresso à
escola. Durante a semana, e em tempo de muito trabalho, as visitas que fazemos
entre casas são mesmo “de médico” porque fazer a viagem de noite tem os seus
perigos e temos que estar acordados muito cedo.
Não tivemos mais falhas de energia e até fazemos uma sessão de cinema
caseiro, na quinta-feira, num canal sul-africano, para descontrair e praticar
um pouco mais o nosso inglês. Com direito a gelado e fruta (esta foi uma
prática instaurada por mim: cortar fruta aos pedacinhos e colocar uma bola de
gelado ao lado), o que é uma raridade por ali e só se faz em momentos
especiais. Uma sobremesa diferente, depois de termos comido frango estufado com
arroz, o habitual. Ou isto, ou cabrito e “xima”. Também tivemos direito a bolo
de coco, na sexta à noite! Sabe bem mimar-nos um bocadinho, depois de uma
semana de emoções fortes.
E uma semana passa a voar! No sábado já estou a voar para Maputo pois no
domingo devo viajar para Inharrime (Inhambane). Desta vez não perco o avião, e
fazemos escala em Quelimane, apesar de ser de novo o avião a hélices. Portanto
a viagem dura cerca de 4h com paragem técnica de 25 minutos. E como o avião
sobrevoa o Índico espero vislumbrar as praias de Inhambane. E lá estão elas,
que lindas! Por enquanto só as conheço do ar! Não é fácil este caminho de
“viandante voluntário”, pois o tempo e o dinheiro não dão para tudo. Não sou
turista. Portanto, aprecio o que consigo ver e desfruto sobretudo das
aprendizagens que faço por entre estas gentes.